sábado, 26 de janeiro de 2013

A Mulher Desiludida, de Simone de Beauvoir



A Mulher Desiludida, obra de Simone de Beauvoir publicada em 1967, traz três novelas independentes que, no conjunto, tratam de temas semelhantes. Retratando personagens femininas na faixa dos 40 anos, a autora aborda com perspicácia temas como a crise de meia-idade, a solidão e o fracasso.
O primeiro texto intitula-se “A Idade da Discrição” e descreve a decepção de uma mãe ao ver seu filho contrariá-la em ideologias e atitudes. Após o casamento do herdeiro, que, na opinião da senhora, uniu-se desfavoravelmente a uma estirpe duvidosa, existe uma ruptura que desfaz a tranqüilidade familiar e suscita uma reflexão magoada, porém não menos pertinente. Felipe, o filho, abandona as doutrinas dos pais e opta por contrariar os pressupostos políticos que lhe foram incutidos desde a infância, abandonando a tese que o levaria à ascensão acadêmica e aceitando um trabalho governamental, quando sua posição deveria ser – se levadas em conta as expectativas de seus antecessores – de absoluta repugnância ao sistema e total dedicação à intelectualidade.
A afronta parece mais severa aos olhos da mãe. Ela acusa o rebento de ter abnegado dos ensinamentos mais tenros e atribui à Irene, a nora que enxerga como um exemplar clássico da rasa burguesia, grande parcela da culpa pela mudança de Felipe, uma vez que seu porte dissimulado e suas idéias ambiciosas o teriam afastado da carreira digna que seus pais lhe haviam preparado.
Firme em sua resignação, recusando-se em receber o filho, a ouvi-lo e a perdoá-lo, a mulher aborrece-se, também, com a repercussão de seu mais recente lançamento literário. Após obter sucesso com algumas publicações anteriores, é com indignação que percebe que não foi capaz de atingir a inovação de pensamento que havia proposto a si mesma, empenhando-se nas linhas que escrevia. As decepções se acumulam e se misturam; e André, seu marido e companheiro, se condói e é reprimido, argumenta e é escarnecido.
Trata-se de um retrato interessante do desenrolar da meia-idade em uma figura inteligente e segura, mas nem por isso poupada das crises que acompanham o envelhecimento. Perder o poder sobre o filho, assisti-lo ir de encontro a tudo que delineara para ele; compreender que falhara na produção de seu livro, galgando-o à desonra de ser apenas ordinário: é o temor de sucumbir ao poder do tempo, percebendo que suas escolhas talvez tenham repercutido de forma diferente do que planejara.
O segundo texto da obra, “Monólogo”, é simplesmente brilhante. O próprio título esclarece a forma do discurso, que quase não tem vírgulas e segue um ritmo que exige fôlego e concentração, embora o artifício só contribua para que o relato seja ainda mais fascinante: Murielle, a protagonista, passa o réveillon sozinha e relata com pungente angústia os tormentos que a assombram, no prenúncio de uma loucura amargurada.
Há, na trama, dois casamentos desfeitos, uma filha morta por suicídio e um filho ausente sob domínio de um homem que ela deseja reaver – mesmo sem amor ou interesse mútuo, talvez em uma tentativa exasperada de sentir-se parte efetiva da vida de alguém. Murielle argumenta que Francis, a criança que lhe foi tomada, necessita de um lar; implora para que seus direitos de mãe sejam respeitados, que não lhe neguem o afeto que devota a ele na mesma proporção que dedicava à Sylvie, que ao matar-se deixou um bilhete comovente e deveras explicativo: “Papai, eu te peço perdão, mas não agüento mais isto.”
Murielle é enfática ao criticar a mãe, a afirmar diversas vezes que desprezava profundamente o irmão. O círculo familiar do qual fez parte é um peso em suas memórias, um tormento ao relembrar sua própria condição. A mulher é continuamente acusada de provocar o suicídio da filha, e as denúncias endurecem os atritos e dão forma às queixas fluídas e sufocantes que deixam de habitar apenas o coração de Murielle para instalarem-se, igualmente nítidas, na mente do leitor.
Abandonada pelos seus e afrontada pela felicidade daqueles que festejam a dada, o desespero da protagonista é intenso. Relegada à própria sorte, fica fácil enxergar que Murielle abandona-se aos devaneios, e quem a lê, assim como todos os outros com quem a mulher tem alguma ligação, a tomam certamente por louca.
Por fim, a terceira parte da obra dá título ao livro, “A Mulher Desiludida”. Escrito em forma de diário, Monique dedica-se ao relato de seu cotidiano para, inicialmente, fugir da solidão da ausência temporária do marido, Maurice, um médico ocupado e envolvido com pesquisas. Mãe de duas filhas, ela renegou todas as possibilidade de concretizar algum tipo de individualidade e dedicou-se exclusivamente à família. Por conta disto, existe em seu comportamento uma aversão a aceitar que qualquer ente possa esquivar-se de precisar dela, e a atenção que reserva a eles chega a ser extenuante.
A história toma outra forma, porém, quando Monique descobre que seu companheiro há vinte e dois anos tem um caso extraconjugal. Sua reação é estúpida: aceita com submissão, orientada por conhecidas, acreditando que trata-se de uma paixão passageira que nada pode abalar.
Ao conhecer o alvo da excitação do marido, a advogada Noellie, Monique convence-se de que não pode haver real encanto por parte de Maurice. A moça, apenas alguns anos mais jovem que ela própria, tem tudo o que ambos sempre repreenderam: é superficial, ambiciosa e oportunista. Seu riso é falso, assim como seu interesse. Tem uma filha, mas não lhe presta a devida atenção. Mente sobre suas habilidades e superestima seu talento. Monique está certa de que não há perigo em consentir essa ligação. Resigna-se, permitindo que Maurice a visite com freqüência, passe noites com ela e, mais tarde, passe e decidir com a amante pormenores que afetam diretamente a ela, Monique, a esposa oficial.
Seus temores crescem na medida em que a distância conjugal aumenta. Maurice mente que está no laboratório enquanto distrai-se com Noellie; deseja viajar com ela, não pode sequer pensar em renegá-la. Monique apenas consente. Muitas são as amigas procuradas, mas nenhum conselho seguido surte o efeito desejado. Maurice não se cansa da advogada e Monique definha-se na certeza de que o perdeu.
Em determinado momento da narrativa, a mulher traída afirma que não existe possibilidade de vida sem o marido, que nada sabe sem ele e que nada tem além dele. Jamais empenhou-se em construir uma carreira, recusando, inclusive, várias ofertas de trabalho. Simone, através deste cenário, expõe sua vertente feminista, esclarecendo nas entrelinhas seu repúdio pela condição das mulheres que viviam à sombra de seus maridos, alimentando por eles cega dependência.
Talvez para reiterar o alerta e disseminar tal deplorável condição, Monique apresenta todos os sinais de consumir-se em sua própria infelicidade. Perde peso, lamenta-se, rememora os cuidados com as filhas e percebe que seu zelo exagerado, advindo provavelmente da falta de outra fonte de ocupação, terminou por proporcionar à Colette e Lucienne uma vida medíocre, para não dizer miserável: enquanto a primeira contentou-se com um casamento cretino, a segunda tornou-se fria, fugidia ao convívio familiar e falsa nos círculos sociais.
Monique compreende, então, o fracasso que dá tom à sua vida. Perdeu o amor do marido, falhou na educação das filhas e encontra-se, aos quarenta e quatro anos, vivendo uma condição que mal consegue suportar. Suas reflexões tornam-se turbulentas, repetitivas, extremamente melancólicas. A desilusão que dá nome ao diário e à obra é, realmente, a característica mais evidente no texto, que tem em sua intensidade um fervor quase palpável.

O fato é que Simone de Beauvoir, que em qualquer análise de obra ou vida é indiscutivelmente associada ao companheiro, o célebre filósofo Jean-Paul Sartre, não merece figurar apenas como uma ramificação na vida da celebridade existencialista que tomou por marido. Sua escrita, por si só, é deslumbrante e acompanha as nuances do livro, sendo leve e envolvente ou pesada e inebriante de acordo com os temas e abordagens. Sua publicação mais importante é, certamente, “O Segundo Sexo”, na qual se propõe a elucidar alternativas e liberdades às mulheres, na expressão mais firme do feminismo.A Mulher Desiludida é uma leitura justificada por motivos que só são firmemente compreendidos após o término da obra.


Trecho: “É, talvez, nesses instantes em que o vejo distanciar-se que ele existe para mim com mais perturbadora evidência: a silhueta alta diminui, desenhando cada passo o caminho de sua volta; ela desaparece, a rua parece vazia, mas, em verdade, é um campo imantado que o reconduzirá a mim como a seu lugar natural. Essa certeza me comove ainda mais que sua presença.”