A Mulher Desiludida, obra de Simone de Beauvoir publicada em 1967, traz
três novelas independentes que, no conjunto, tratam de temas semelhantes.
Retratando personagens femininas na faixa dos 40 anos, a autora aborda com
perspicácia temas como a crise de meia-idade, a solidão e o fracasso.
O primeiro texto intitula-se “A Idade da Discrição” e descreve a decepção
de uma mãe ao ver seu filho contrariá-la em ideologias e atitudes. Após o
casamento do herdeiro, que, na opinião da senhora, uniu-se desfavoravelmente a
uma estirpe duvidosa, existe uma ruptura que desfaz a tranqüilidade familiar e
suscita uma reflexão magoada, porém não menos pertinente. Felipe, o filho,
abandona as doutrinas dos pais e opta por contrariar os pressupostos políticos
que lhe foram incutidos desde a infância, abandonando a tese que o levaria à
ascensão acadêmica e aceitando um trabalho governamental, quando sua posição
deveria ser – se levadas em conta as expectativas de seus antecessores – de
absoluta repugnância ao sistema e total dedicação à intelectualidade.
A afronta parece mais severa aos olhos da mãe. Ela acusa o rebento de ter
abnegado dos ensinamentos mais tenros e atribui à Irene, a nora que enxerga
como um exemplar clássico da rasa burguesia, grande parcela da culpa pela mudança
de Felipe, uma vez que seu porte dissimulado e suas idéias ambiciosas o teriam
afastado da carreira digna que seus pais lhe haviam preparado.
Firme em sua resignação, recusando-se em receber o filho, a ouvi-lo e a
perdoá-lo, a mulher aborrece-se, também, com a repercussão de seu mais recente
lançamento literário. Após obter sucesso com algumas publicações anteriores, é
com indignação que percebe que não foi capaz de atingir a inovação de
pensamento que havia proposto a si mesma, empenhando-se nas linhas que
escrevia. As decepções se acumulam e se misturam; e André, seu marido e companheiro,
se condói e é reprimido, argumenta e é escarnecido.
Trata-se de um retrato interessante do desenrolar da meia-idade em uma
figura inteligente e segura, mas nem por isso poupada das crises que acompanham
o envelhecimento. Perder o poder sobre o filho, assisti-lo ir de encontro a
tudo que delineara para ele; compreender que falhara na produção de seu livro,
galgando-o à desonra de ser apenas ordinário: é o temor de sucumbir ao poder do
tempo, percebendo que suas escolhas talvez tenham repercutido de forma
diferente do que planejara.
O segundo texto da obra, “Monólogo”, é simplesmente brilhante. O próprio
título esclarece a forma do discurso, que quase não tem vírgulas e segue um
ritmo que exige fôlego e concentração, embora o artifício só contribua para que
o relato seja ainda mais fascinante: Murielle, a protagonista, passa o
réveillon sozinha e relata com pungente angústia os tormentos que a assombram,
no prenúncio de uma loucura amargurada.
Há, na trama, dois casamentos desfeitos, uma filha morta por suicídio e
um filho ausente sob domínio de um homem que ela deseja reaver – mesmo sem amor
ou interesse mútuo, talvez em uma tentativa exasperada de sentir-se parte
efetiva da vida de alguém. Murielle argumenta que Francis, a criança que lhe
foi tomada, necessita de um lar; implora para que seus direitos de mãe sejam
respeitados, que não lhe neguem o afeto que devota a ele na mesma proporção que
dedicava à Sylvie, que ao matar-se deixou um bilhete comovente e deveras
explicativo: “Papai, eu te peço perdão, mas não agüento mais isto.”
Murielle é enfática ao criticar a mãe, a afirmar diversas vezes que
desprezava profundamente o irmão. O círculo familiar do qual fez parte é um
peso em suas memórias, um tormento ao relembrar sua própria condição. A mulher
é continuamente acusada de provocar o suicídio da filha, e as denúncias endurecem
os atritos e dão forma às queixas fluídas e sufocantes que deixam de habitar
apenas o coração de Murielle para instalarem-se, igualmente nítidas, na mente
do leitor.
Abandonada pelos seus e afrontada pela felicidade daqueles que festejam a
dada, o desespero da protagonista é intenso. Relegada à própria sorte, fica
fácil enxergar que Murielle abandona-se aos devaneios, e quem a lê, assim como
todos os outros com quem a mulher tem alguma ligação, a tomam certamente por
louca.
Por fim, a terceira parte da obra dá título ao livro, “A Mulher
Desiludida”. Escrito em forma de diário, Monique dedica-se ao relato de seu
cotidiano para, inicialmente, fugir da solidão da ausência temporária do
marido, Maurice, um médico ocupado e envolvido com pesquisas. Mãe de duas
filhas, ela renegou todas as possibilidade de concretizar algum tipo de
individualidade e dedicou-se exclusivamente à família. Por conta disto, existe
em seu comportamento uma aversão a aceitar que qualquer ente possa esquivar-se
de precisar dela, e a atenção que reserva a eles chega a ser extenuante.
A história toma outra forma, porém, quando Monique descobre que seu
companheiro há vinte e dois anos tem um caso extraconjugal. Sua reação é
estúpida: aceita com submissão, orientada por conhecidas, acreditando que
trata-se de uma paixão passageira que nada pode abalar.
Ao conhecer o alvo da excitação do marido, a advogada Noellie, Monique
convence-se de que não pode haver real encanto por parte de Maurice. A moça,
apenas alguns anos mais jovem que ela própria, tem tudo o que ambos sempre
repreenderam: é superficial, ambiciosa e oportunista. Seu riso é falso, assim
como seu interesse. Tem uma filha, mas não lhe presta a devida atenção. Mente
sobre suas habilidades e superestima seu talento. Monique está certa de que não
há perigo em consentir essa ligação. Resigna-se, permitindo que Maurice a
visite com freqüência, passe noites com ela e, mais tarde, passe e decidir com
a amante pormenores que afetam diretamente a ela, Monique, a esposa oficial.
Seus temores crescem na medida em que a distância conjugal aumenta.
Maurice mente que está no laboratório enquanto distrai-se com Noellie; deseja
viajar com ela, não pode sequer pensar em renegá-la. Monique
apenas consente. Muitas são as amigas procuradas, mas nenhum conselho seguido
surte o efeito desejado. Maurice não se cansa da advogada e Monique definha-se
na certeza de que o perdeu.
Em determinado momento da narrativa, a mulher traída afirma que não
existe possibilidade de vida sem o marido, que nada sabe sem ele e que nada tem
além dele. Jamais empenhou-se em construir uma carreira, recusando, inclusive,
várias ofertas de trabalho. Simone, através deste cenário, expõe sua vertente
feminista, esclarecendo nas entrelinhas seu repúdio pela condição das mulheres
que viviam à sombra de seus maridos, alimentando por eles cega dependência.
Talvez para reiterar o alerta e disseminar tal deplorável condição,
Monique apresenta todos os sinais de consumir-se em sua própria infelicidade.
Perde peso, lamenta-se, rememora os cuidados com as filhas e percebe que seu
zelo exagerado, advindo provavelmente da falta de outra fonte de ocupação,
terminou por proporcionar à Colette e Lucienne uma vida medíocre, para não
dizer miserável: enquanto a primeira contentou-se com um casamento cretino, a
segunda tornou-se fria, fugidia ao convívio familiar e falsa nos círculos
sociais.
Monique compreende, então, o fracasso que dá tom à sua vida. Perdeu o
amor do marido, falhou na educação das filhas e encontra-se, aos quarenta e
quatro anos, vivendo uma condição que mal consegue suportar. Suas reflexões
tornam-se turbulentas, repetitivas, extremamente melancólicas. A desilusão que
dá nome ao diário e à obra é, realmente, a característica mais evidente no
texto, que tem em sua intensidade um fervor quase palpável.
O fato é que Simone de Beauvoir, que em qualquer análise de obra ou vida
é indiscutivelmente associada ao companheiro, o célebre filósofo Jean-Paul
Sartre, não merece figurar apenas como uma ramificação na vida da celebridade
existencialista que tomou por marido. Sua escrita, por si só, é deslumbrante e
acompanha as nuances do livro, sendo leve e envolvente ou pesada e inebriante
de acordo com os temas e abordagens. Sua publicação mais importante é,
certamente, “O Segundo Sexo”, na qual se propõe a elucidar alternativas e
liberdades às mulheres, na expressão mais firme do feminismo.A Mulher
Desiludida é uma leitura justificada por motivos que só são firmemente
compreendidos após o término da obra.
Trecho: “É, talvez, nesses
instantes em que o vejo distanciar-se que ele existe para mim com mais perturbadora
evidência: a silhueta alta diminui, desenhando cada passo o caminho de sua
volta; ela desaparece, a rua parece vazia, mas, em verdade, é um campo imantado
que o reconduzirá a mim como a seu lugar natural. Essa certeza me comove ainda
mais que sua presença.”