sexta-feira, 31 de maio de 2013

Presença de Anita, de Mário Donato



Presença de Anita é um romance denso e, em alguns trechos, quase opressivo em sua intensidade. O enredo, belamente construído por Donato, prioriza os personagens em detrimento dos cenários e nos introduz a Eduardo, um arquiteto quarentão que, de acordo com Dr. Eugênio, seu médico, já nasceu dotado de uma ansiedade que não o permite desfrutar de uma vida tranqüila.
Eduardo é um homem dividido entre quatro mulheres, confusamente indeciso entre sentimentos distintos que oscilam entre a idealização, o desejo e o amor. Trata-se, essencialmente, de um percurso turbulento que tem na realidade do personagem o reflexo inexorável do tumulto mental que o acompanha: a concepção de Cíntia, a primeira das mulheres amadas, desencadeia a série de fatos que dão ao livro sua conotação controversa e, ao mesmo tempo, envolvente.
Cíntia é, portanto, fruto da imaginação agitada de Eduardo, que a nomeia em sonoridade breve e doída e, de seu punho, lhe dá formas adolescentes e características marcantes: o pescoço tenro, os cabelos voluptuosos, a boca sensual. Há nela uma aura misteriosa, uma crueldade comedida, uma maldade intrínseca. É Cíntia o seu primeiro amor – e é por ela, baseando-se nas qualidades que atribuiu à moça imaginária, que busca todas as mulheres com quem se envolve. Recém desenhada, o esboço adverte Eduardo: “Um dia você me encontrará e não poderá ser meu”. E Eduardo, enamorado da criação ainda que consciente da realidade, responde-lhe que já a procurou por muito tempo e que jamais a encontrou. Certo de seu sonho e ainda mais convicto da impossibilidade de concretizá-lo, casa-se com Lúcia.
Lúcia, a segunda, é, por sua vez, o oposto completo de Cíntia. Eduardo descreve a esposa como uma mulher sem brilho, dona de uma beleza que atrai, mas não empolga. Julga-a de uma frieza inabalável, em alguns momentos reconhece sua superioridade e, por fim, ciente de que não pode mais continuar com ela de acordo com as determinações do matrimônio, admira a extrema correção com que Lúcia conduz sua vida ordinária, um traço que permite que ela seja incapaz de cometer pecados, embora esteja sempre pronta a perdoá-los sem humilhar o pecador. Convém dizer, em defesa do homem que a desposou, que Eduardo tenta amá-la – assim como tenta amar os filhos sem que jamais tenha lhes dado a atenção e o afeto esperados de um pai –, porém sua natureza indomável, tão diferente da de Lúcia em variados aspectos, o impele sempre para uma aventura abrasadora, certamente muito distante da parcimônia que emana de Lúcia, de seu ar gélido que insiste em paralisar o interesse do marido.
Anita, a terceira, é a força que move toda a trama. A jovem, cuja idade não revelada supõe que ela não seja mais do que uma menina, aparece, inicialmente, na aflição de um Eduardo sentimentalmente insatisfeito, como a personificação de Cíntia, a mulher idealizada. A jovem, que se muda para a cidade de Eduardo e vai morar no sótão de propriedade de um estabelecimento que ele freqüentava, é vista pela primeira vez debruçada na janela dos aposentos, o reflexo da luz em suas costas impedindo que Eduardo lhe estudasse as feições. De imediato, ao contemplar sua sombra e distinguir apenas os seus cabelos louros, ele se questiona: seria possível que se chamasse Cíntia?
Descobre-se, em seguida, que se trata de Anita, uma menina com um passado obscuro, aparentemente sozinha no mundo. Suas maneiras são altivas e expansivas, seus olhos são rasos e seus sentimentos efusivos e enérgicos. Por mais de uma vez e em mais de uma situação Eduardo caracteriza Anita como veemente, palavra que reverbera em todas as ações da pupila, sejam sutis ou coléricas. Dessa aproximação, marcada pela atração carnal de ambos os lados, nasce o romance que desestrutura a vida de Eduardo e leva o casal de amantes a extremos perigosos – e o ápice disso tudo é o plano de mútuo suicídio que os dois concordam em cometer, planejando, na ilusão de Anita e na covardia de Eduardo, viverem juntos na eternidade.
Com Anita morta por sua mão, em um tiro disparado de forma hesitantemente constrangida, Eduardo sobrevive ao atentado ao qual também se submete após o assassinato da amante. Levado ao hospital e vigiado pelo fiel Dr. Eugênio, o homem escapa com vida e, juntamente com o vigor que lhe volta ao corpo, a vontade de morrer – com Anita e por Anita - afasta-se permanentemente de sua alma. Cabe observar que embora almejasse, na fatídica ocasião, concluir o pacto que fizera, ele deixa de desejar juntar-se e ela e agarra-se à realidade e à vida. Recuperado, enfim, enfrenta em tribunal um julgamento que o absorve da culpa de um crime, mas o encarcera nas memórias de uma Anita apaixonada que insiste na conclusão dos ajustes que haviam combinado em vida, nas tardes e noites passadas no sótão.
A quarta personagem feminina - cujas características estimulam o leitor a pensar que se trata de outra adolescente - é Diana, irmã mais nova de Lúcia, esposa de Eduardo. A jovem, que nunca demonstrara qualquer empatia pelo cunhado desde que ele fora apresentado à família, se vê apaixonada pelo homem no momento em que toma ciência da existência e, sobretudo, do desfecho do caso extraconjugal. Deslumbrada pelo romantismo da situação, atraída pelo destino mórbido de Anita frente à sobrevivência de Eduardo, a menina joga-se nos braços do homem alegando que a coragem demonstrada diante de uma complicação amorosa fez com que entendesse que haviam sido feitos um para o outro. Até o escárnio inicial, que se arrastava desde a infância de Diana e evapora-se após a convalescência de Eduardo, é explicada como um rancor angustiado por Lúcia haver se casado com o homem que estava destinado a ser dela.
Comprometida com um homem ordinário, de nome Batista, Diana não hesita em abandoná-lo sem o menor remorso, consciente que está de sua paixão por Eduardo e firmemente confiante no retorno completo e sublime de seu elevado sentimento. Embora relutante, talvez um pouco desconfortável diante de novas e perigosas possibilidades amorosas, Eduardo tenta resistir aos joviais encantos de Diana. Pensa realmente poder controlá-la, subvertê-la de acordo com seus próprios desejos masculinos, ter com ela apenas uma diversão esporádica que não afetaria sua vida de marido e pai de família, faceta que se esforçava para desempenhar de maneira satisfatória desde que fora sumariamente perdoado pela fria Lúcia. Não pôde, porém. Seus planos de calmaria e sossego são definitivamente arruinados quando, em uma revelação impressionante, Eduardo descobre nas formas de Diana, em sua pele alva e macia de adolescente libertina, a própria silhueta de Cíntia, revelando-se a ele como o mais intrigante dos segredos. Sua reação caracteriza-se por um misto envolvente de estupefação e tortura, além de grata realização por ter sua amada, a Vitoriosa, acolhida em seus braços além dos esboços em papel.
Diante de tal revelação, Eduardo torna-se incapaz de resistir aos encantos de Diana, em sua condição de portadora dos milagres de Cíntia, e promete à cunhada que largará Lúcia para fugir com ela. Anita, a essa altura, já deixou de ser uma lembrança vívida para tornar-se uma sombra desbotada na memória do amante, por sua vez seguro de que não havia mais nada que, enquanto homem vivo, pudesse fazer pela morta. Convicto, completamente imerso no milagre do encontro real com sua paixão imaginária, Eduardo desculpa-se com a família, alega que precisa viajar – omitindo o nome da acompanhante para poupar a reputação da linhagem e os sofrimentos da esposa – e despede-se dos filhos com a distância habitual.
De malas prontas, com a nova vida encaminhada, a passagem marcada para a próxima partida e Diana esperando por ele, Eduardo sente uma necessidade irremediável de visitar o sótão que fora seu ninho de amor com Anita. Conchita, um objeto peculiar que tinha a forma de uma bonequinha e que fora, muitas vezes, alvo de ciúmes por parte da menina, significava para ele a única ligação que ainda o prendia à antiga amante, carecendo de imediata destruição para que ele finalmente se libertasse das lembranças que o invadiam vez ou outra. Dr. Eugênio, muito solícito, prontifica-se a acompanhá-lo, tomado de uma curiosidade que não consegue controlar.
Uma vez nas escadas, percorrendo os degraus sem iluminação que ele tantas vezes subira para encontrar Anita, Eduardo quase pode jurar que ela está ali, a esperá-lo seminua, pintando as unhas dos pés e emanando aquele aroma adocicado de esmalte que lhe era tão próprio. A mobília permanece intocada, quase não há vestígios do incidente ocorrido e mesmo Dr. Eugênio extasia-se diante do cenário, imaginando a diversão desfrutada pelo cliente naquele recanto velado. Absorvido pelas reminiscências, mas não por isso menos determinado, Eduardo concretiza o que se dispusera a fazer e parte Conchita em diversos pedaços, sentindo-se finalmente preparado para abandonar tudo o que Anita havia significado e todas as memórias que ela poderia suscitar, obstinada e intensa como era.
Ao deixarem o sótão, finalmente, os amigos enfim despedem-se. Dr. Eugênio, demonstrando a costumeira estima que dispensava a Eduardo, deseja-lhe sorte em sua nova vida, fazendo-lhe votos de um grande futuro. Ele, por sua vez, agradecido da gentileza, mal pode conter dentro de seu corpo aquecido a chama da liberdade que crepitava em seu coração e espalhava-se para os demais órgãos, consumindo-o. Em passos rápidos, metaforicamente expressando sua pressa em recomeçar a vida com a posse de Diana em sua plenitude, Eduardo é contido repentinamente pelo surgimento da face furiosa de Anita, suas mãos crispadas: “Tu me traíste!”, é só o que ela diz, os olhos cheios de pranto, os cabelos em desalinho, implorando por um amor que ainda se sentia capaz – e, mais ainda, no direito - de ter.
Anita roga-lhe, implora para que Eduardo se junte a ela. Não cessa de dizer que o ama ardentemente, que o espera com impaciência, que desde que se foi, pelas mãos quentes do amante, aguarda por ele na tranqüila eternidade prometida. O homem, inicialmente assustado pela agressividade demonstrada pelo espectro da amante, põe-se a correr para fugir do fantasma. Anita, entretanto, hábil e decidida como fora em vida, segue-o, tenta beijá-lo, busca convencê-lo de que o lugar dele é junto dela, que estavam fadados ao amor eterno que não tinham conseguido viver na Terra. Consciente, enfim, de que a jovem nenhum mal poderia fazer-lhe, Eduardo recusa-se resolutamente a segui-la, negando-lhe veementemente o pedido. Anita, ao ver-se rejeitada, tem a face esmaecida e as órbitas dos olhos esvaziadas de tudo o que é humano. Reflete-se em seu semblante enevoado uma aflição, um tormento, o ódio, e tudo o que a compunha some no ar com um estalo. Eduardo está finalmente só.

Trecho: “Ela estava em seus braços e, querendo beijá-lo, passava através dele e o repelia com a sua febre, que era gelo, mais fria que gelo. Ele sacudia a cabeça, que não, que não, e ela se debruçava sobre aquele homem que lhe fugia, hesitava um instante com as mãos enclavinhadas, e depois, cedendo ao desespero, esbofeteava-o, esbofeteava-o uma, duas, três vezes, e chorava, chorava. E como o homem não cedia – que não, que não – tentava aquecê-lo com seus beijos, como em vida fizera, mas os seus beijos eram gelados e gelavam, eram gelados e doíam.”

P.S: Confesso que fiquei levemente assustada e grandemente surpresa quando percebi que Presença de Anita (1948), de Mário Donato, é anterior à célebre obra de Nabokov, Lolita (1955). Sendo o último título o meu romance preferido de todos os tempos, talvez faça sentido algumas especulações que afirmam que o russo inspirou-se no brasileiro para produzir a trama que o imortalizou na literatura, haja vista a semelhança no tema: a paixão irrefreável por uma mulher muito mais jovem.
De fato, ambos os autores e, por conseguinte, ambas as obras mencionadas, são, para mim, brilhantes. Donato foi uma grata satisfação e foi também reconfortante gostar tanto assim de uma história nacional. Nabokov, por sua vez, continua encabeçando minha humilde lista de prediletos, mas há outro nome seguindo-o bem de perto...