sexta-feira, 31 de maio de 2013

Presença de Anita, de Mário Donato



Presença de Anita é um romance denso e, em alguns trechos, quase opressivo em sua intensidade. O enredo, belamente construído por Donato, prioriza os personagens em detrimento dos cenários e nos introduz a Eduardo, um arquiteto quarentão que, de acordo com Dr. Eugênio, seu médico, já nasceu dotado de uma ansiedade que não o permite desfrutar de uma vida tranqüila.
Eduardo é um homem dividido entre quatro mulheres, confusamente indeciso entre sentimentos distintos que oscilam entre a idealização, o desejo e o amor. Trata-se, essencialmente, de um percurso turbulento que tem na realidade do personagem o reflexo inexorável do tumulto mental que o acompanha: a concepção de Cíntia, a primeira das mulheres amadas, desencadeia a série de fatos que dão ao livro sua conotação controversa e, ao mesmo tempo, envolvente.
Cíntia é, portanto, fruto da imaginação agitada de Eduardo, que a nomeia em sonoridade breve e doída e, de seu punho, lhe dá formas adolescentes e características marcantes: o pescoço tenro, os cabelos voluptuosos, a boca sensual. Há nela uma aura misteriosa, uma crueldade comedida, uma maldade intrínseca. É Cíntia o seu primeiro amor – e é por ela, baseando-se nas qualidades que atribuiu à moça imaginária, que busca todas as mulheres com quem se envolve. Recém desenhada, o esboço adverte Eduardo: “Um dia você me encontrará e não poderá ser meu”. E Eduardo, enamorado da criação ainda que consciente da realidade, responde-lhe que já a procurou por muito tempo e que jamais a encontrou. Certo de seu sonho e ainda mais convicto da impossibilidade de concretizá-lo, casa-se com Lúcia.
Lúcia, a segunda, é, por sua vez, o oposto completo de Cíntia. Eduardo descreve a esposa como uma mulher sem brilho, dona de uma beleza que atrai, mas não empolga. Julga-a de uma frieza inabalável, em alguns momentos reconhece sua superioridade e, por fim, ciente de que não pode mais continuar com ela de acordo com as determinações do matrimônio, admira a extrema correção com que Lúcia conduz sua vida ordinária, um traço que permite que ela seja incapaz de cometer pecados, embora esteja sempre pronta a perdoá-los sem humilhar o pecador. Convém dizer, em defesa do homem que a desposou, que Eduardo tenta amá-la – assim como tenta amar os filhos sem que jamais tenha lhes dado a atenção e o afeto esperados de um pai –, porém sua natureza indomável, tão diferente da de Lúcia em variados aspectos, o impele sempre para uma aventura abrasadora, certamente muito distante da parcimônia que emana de Lúcia, de seu ar gélido que insiste em paralisar o interesse do marido.
Anita, a terceira, é a força que move toda a trama. A jovem, cuja idade não revelada supõe que ela não seja mais do que uma menina, aparece, inicialmente, na aflição de um Eduardo sentimentalmente insatisfeito, como a personificação de Cíntia, a mulher idealizada. A jovem, que se muda para a cidade de Eduardo e vai morar no sótão de propriedade de um estabelecimento que ele freqüentava, é vista pela primeira vez debruçada na janela dos aposentos, o reflexo da luz em suas costas impedindo que Eduardo lhe estudasse as feições. De imediato, ao contemplar sua sombra e distinguir apenas os seus cabelos louros, ele se questiona: seria possível que se chamasse Cíntia?
Descobre-se, em seguida, que se trata de Anita, uma menina com um passado obscuro, aparentemente sozinha no mundo. Suas maneiras são altivas e expansivas, seus olhos são rasos e seus sentimentos efusivos e enérgicos. Por mais de uma vez e em mais de uma situação Eduardo caracteriza Anita como veemente, palavra que reverbera em todas as ações da pupila, sejam sutis ou coléricas. Dessa aproximação, marcada pela atração carnal de ambos os lados, nasce o romance que desestrutura a vida de Eduardo e leva o casal de amantes a extremos perigosos – e o ápice disso tudo é o plano de mútuo suicídio que os dois concordam em cometer, planejando, na ilusão de Anita e na covardia de Eduardo, viverem juntos na eternidade.
Com Anita morta por sua mão, em um tiro disparado de forma hesitantemente constrangida, Eduardo sobrevive ao atentado ao qual também se submete após o assassinato da amante. Levado ao hospital e vigiado pelo fiel Dr. Eugênio, o homem escapa com vida e, juntamente com o vigor que lhe volta ao corpo, a vontade de morrer – com Anita e por Anita - afasta-se permanentemente de sua alma. Cabe observar que embora almejasse, na fatídica ocasião, concluir o pacto que fizera, ele deixa de desejar juntar-se e ela e agarra-se à realidade e à vida. Recuperado, enfim, enfrenta em tribunal um julgamento que o absorve da culpa de um crime, mas o encarcera nas memórias de uma Anita apaixonada que insiste na conclusão dos ajustes que haviam combinado em vida, nas tardes e noites passadas no sótão.
A quarta personagem feminina - cujas características estimulam o leitor a pensar que se trata de outra adolescente - é Diana, irmã mais nova de Lúcia, esposa de Eduardo. A jovem, que nunca demonstrara qualquer empatia pelo cunhado desde que ele fora apresentado à família, se vê apaixonada pelo homem no momento em que toma ciência da existência e, sobretudo, do desfecho do caso extraconjugal. Deslumbrada pelo romantismo da situação, atraída pelo destino mórbido de Anita frente à sobrevivência de Eduardo, a menina joga-se nos braços do homem alegando que a coragem demonstrada diante de uma complicação amorosa fez com que entendesse que haviam sido feitos um para o outro. Até o escárnio inicial, que se arrastava desde a infância de Diana e evapora-se após a convalescência de Eduardo, é explicada como um rancor angustiado por Lúcia haver se casado com o homem que estava destinado a ser dela.
Comprometida com um homem ordinário, de nome Batista, Diana não hesita em abandoná-lo sem o menor remorso, consciente que está de sua paixão por Eduardo e firmemente confiante no retorno completo e sublime de seu elevado sentimento. Embora relutante, talvez um pouco desconfortável diante de novas e perigosas possibilidades amorosas, Eduardo tenta resistir aos joviais encantos de Diana. Pensa realmente poder controlá-la, subvertê-la de acordo com seus próprios desejos masculinos, ter com ela apenas uma diversão esporádica que não afetaria sua vida de marido e pai de família, faceta que se esforçava para desempenhar de maneira satisfatória desde que fora sumariamente perdoado pela fria Lúcia. Não pôde, porém. Seus planos de calmaria e sossego são definitivamente arruinados quando, em uma revelação impressionante, Eduardo descobre nas formas de Diana, em sua pele alva e macia de adolescente libertina, a própria silhueta de Cíntia, revelando-se a ele como o mais intrigante dos segredos. Sua reação caracteriza-se por um misto envolvente de estupefação e tortura, além de grata realização por ter sua amada, a Vitoriosa, acolhida em seus braços além dos esboços em papel.
Diante de tal revelação, Eduardo torna-se incapaz de resistir aos encantos de Diana, em sua condição de portadora dos milagres de Cíntia, e promete à cunhada que largará Lúcia para fugir com ela. Anita, a essa altura, já deixou de ser uma lembrança vívida para tornar-se uma sombra desbotada na memória do amante, por sua vez seguro de que não havia mais nada que, enquanto homem vivo, pudesse fazer pela morta. Convicto, completamente imerso no milagre do encontro real com sua paixão imaginária, Eduardo desculpa-se com a família, alega que precisa viajar – omitindo o nome da acompanhante para poupar a reputação da linhagem e os sofrimentos da esposa – e despede-se dos filhos com a distância habitual.
De malas prontas, com a nova vida encaminhada, a passagem marcada para a próxima partida e Diana esperando por ele, Eduardo sente uma necessidade irremediável de visitar o sótão que fora seu ninho de amor com Anita. Conchita, um objeto peculiar que tinha a forma de uma bonequinha e que fora, muitas vezes, alvo de ciúmes por parte da menina, significava para ele a única ligação que ainda o prendia à antiga amante, carecendo de imediata destruição para que ele finalmente se libertasse das lembranças que o invadiam vez ou outra. Dr. Eugênio, muito solícito, prontifica-se a acompanhá-lo, tomado de uma curiosidade que não consegue controlar.
Uma vez nas escadas, percorrendo os degraus sem iluminação que ele tantas vezes subira para encontrar Anita, Eduardo quase pode jurar que ela está ali, a esperá-lo seminua, pintando as unhas dos pés e emanando aquele aroma adocicado de esmalte que lhe era tão próprio. A mobília permanece intocada, quase não há vestígios do incidente ocorrido e mesmo Dr. Eugênio extasia-se diante do cenário, imaginando a diversão desfrutada pelo cliente naquele recanto velado. Absorvido pelas reminiscências, mas não por isso menos determinado, Eduardo concretiza o que se dispusera a fazer e parte Conchita em diversos pedaços, sentindo-se finalmente preparado para abandonar tudo o que Anita havia significado e todas as memórias que ela poderia suscitar, obstinada e intensa como era.
Ao deixarem o sótão, finalmente, os amigos enfim despedem-se. Dr. Eugênio, demonstrando a costumeira estima que dispensava a Eduardo, deseja-lhe sorte em sua nova vida, fazendo-lhe votos de um grande futuro. Ele, por sua vez, agradecido da gentileza, mal pode conter dentro de seu corpo aquecido a chama da liberdade que crepitava em seu coração e espalhava-se para os demais órgãos, consumindo-o. Em passos rápidos, metaforicamente expressando sua pressa em recomeçar a vida com a posse de Diana em sua plenitude, Eduardo é contido repentinamente pelo surgimento da face furiosa de Anita, suas mãos crispadas: “Tu me traíste!”, é só o que ela diz, os olhos cheios de pranto, os cabelos em desalinho, implorando por um amor que ainda se sentia capaz – e, mais ainda, no direito - de ter.
Anita roga-lhe, implora para que Eduardo se junte a ela. Não cessa de dizer que o ama ardentemente, que o espera com impaciência, que desde que se foi, pelas mãos quentes do amante, aguarda por ele na tranqüila eternidade prometida. O homem, inicialmente assustado pela agressividade demonstrada pelo espectro da amante, põe-se a correr para fugir do fantasma. Anita, entretanto, hábil e decidida como fora em vida, segue-o, tenta beijá-lo, busca convencê-lo de que o lugar dele é junto dela, que estavam fadados ao amor eterno que não tinham conseguido viver na Terra. Consciente, enfim, de que a jovem nenhum mal poderia fazer-lhe, Eduardo recusa-se resolutamente a segui-la, negando-lhe veementemente o pedido. Anita, ao ver-se rejeitada, tem a face esmaecida e as órbitas dos olhos esvaziadas de tudo o que é humano. Reflete-se em seu semblante enevoado uma aflição, um tormento, o ódio, e tudo o que a compunha some no ar com um estalo. Eduardo está finalmente só.

Trecho: “Ela estava em seus braços e, querendo beijá-lo, passava através dele e o repelia com a sua febre, que era gelo, mais fria que gelo. Ele sacudia a cabeça, que não, que não, e ela se debruçava sobre aquele homem que lhe fugia, hesitava um instante com as mãos enclavinhadas, e depois, cedendo ao desespero, esbofeteava-o, esbofeteava-o uma, duas, três vezes, e chorava, chorava. E como o homem não cedia – que não, que não – tentava aquecê-lo com seus beijos, como em vida fizera, mas os seus beijos eram gelados e gelavam, eram gelados e doíam.”

P.S: Confesso que fiquei levemente assustada e grandemente surpresa quando percebi que Presença de Anita (1948), de Mário Donato, é anterior à célebre obra de Nabokov, Lolita (1955). Sendo o último título o meu romance preferido de todos os tempos, talvez faça sentido algumas especulações que afirmam que o russo inspirou-se no brasileiro para produzir a trama que o imortalizou na literatura, haja vista a semelhança no tema: a paixão irrefreável por uma mulher muito mais jovem.
De fato, ambos os autores e, por conseguinte, ambas as obras mencionadas, são, para mim, brilhantes. Donato foi uma grata satisfação e foi também reconfortante gostar tanto assim de uma história nacional. Nabokov, por sua vez, continua encabeçando minha humilde lista de prediletos, mas há outro nome seguindo-o bem de perto...

sábado, 2 de março de 2013

A Orgia Perpétua, de Mario Vargas Llosa



“O único meio de suportar a existência é despojar-se na literatura como em uma orgia perpétua.” Gustave Flaubert.

Mario Vargas Llosa, tomado pela adoração fiel por Madame Bovary, obra-prima do escritor francês Gustave Flaubert, lançou em 1979 um livro que explicita suas ponderações pessoais sobre a publicação de seu ídolo. No texto, Vargas Llosa inicia suas reflexões sobre o tema afirmando que um punhado de personagens fictícios marcou sua existência de maneira mais durável que boa parte dos seres de carne e osso que conheceu, e, nesse contexto - que exalta o poder da literatura frente aos esquecimentos do cotidiano -, Ema Bovary, a heroína de Flaubert, desponta como sua grande paixão literária.
A adoração pelo romance de Flaubert, entretanto, não foi imediata. Vargas Llosa esclarece, na parte intitulada Um, que o primeiro contato com a trama ocorreu através do cinema, em 1952; a segunda lembrança, por sua vez, é puramente acadêmica, e essa sim marca o começo de uma duradoura história de envolvimento e entusiasmo.
Mario também é convicto ao ponderar que o estilo linear e simétrico de Flaubert foi o estopim para o interesse. Considerando as claras preferências pessoais do autor peruano à ordem rigorosa dos romances, aqueles com princípio e fim, seu apetite pela seqüência da trama advém, em grande parte, de sua propensão a seduzir-se mais com ações do que com reflexões – particularidades que podem ser encontradas em Madame Bovary e em seus pequenos acontecimentos: bailes, reuniões, adultério e suicídio, por exemplo.
Quanto ao assunto, o estudioso assegura que elementos como violência, rebeldia, melodrama e sexo, inseridos com prudência em uma história compacta, o atraem mais do que romances em que as pequenas transgressões são suprimidas. Em suas palavras, “a máxima satisfação que pode produzir um romance é provocar, ao mesmo tempo da leitura, a admiração por alguma inconformidade, a cólera por alguma burrice ou injustiça, a fascinação por situações de dramatismo e de excessiva emocionalidade que o romantismo pareceu inventar porque usou e abusou delas, mas que sempre têm existido na literatura, porque existiram sempre na realidade.”
Há, ainda, segundo o ele, um segredo peculiar que ele partilha com Ema, uma confidência solene que só faz aumentar os seus laços com ela: a angústia da personagem ajudou a amenizar as tristezas do fiel leitor, e o suicídio da primeira aquietou tendências semelhantes que crepitavam no coração que a acompanhava com sofrimento e devoção. O trágico desfecho de Ema proporcionou a Llosa, em seu momento de desespero, conforto e equilíbrio para que suportasse as turbulências de sua vida, e em um trecho do relato o autor declara que foi preciso que Ema se matasse para que ele próprio pudesse viver.
A segunda parte do livro de Mario, porém, toma uma direção diferente. Abandonam-se as percepções pessoais e presencia-se focada concentração nas circunstâncias singulares que de alguma forma influenciaram Flaubert a conceber sua obra da maneira como foi produzida. Utilizando-se de uma composição de perguntas e respostas, Vargas Llosa procura identificar e explicar as conjunturas internas e externas que contribuíram para que o enredo, o cenário e os personagens de Madame Bovary fossem engendrados e, posteriormente, alimentados de acordo com a imaginação perspicaz de Flaubert.
Na mesma etapa, destaca-se também a trajetória particular da vida do escritor francês, detalhando fatos curiosos que refletiram com pertinência no contexto que retratou em sua obra. Seus relacionamentos, tanto familiares quanto amorosos, estão fartamente ligados ao desenrolar da vida de Ema, Charles, Leão e Rodolfo da mesma forma que dois acontecimentos regionais, dos quais Flaubert tomou conhecimento através de relatos proferidos por amigos e vizinhos, configuraram-se como o alicerce de toda a trama que desenvolveu.
As influências de livros que precederam Madame Bovary e que de alguma forma colaboraram com a escrita de Flaubert também são citadas. Mario elucida que a maior fonte absorvida é o romance Dom Quixote, cuja autoria deve-se ao espanhol Miguel de Cervantes. Outra obra eminente que apresenta conexão com a trama francesa é, segundo Llosa, A Comédia Humana, de Balzac, a quem Flaubert dedicava certa admiração, pontuando que “caso tivesse estilo, teria sido um escritor memorável”.
A terceira e última parte do ensaio de Mario Vargas Llosa intitula-se O elemento acrescentado e trata, de forma geral, das características específicas que compõe, de fato, as alegorias mais marcantes de Madame Bovary. Segundo o crítico, os principais tópicos são: a humanização das coisas, a coisificação dos homens, a oposição entre dinheiro e amor, a protagonista – Ema Bovary – como homem e, por fim, a existência de um mundo binário. Para corroborar a análise e fundamentar as segmentações, Mario busca exemplos extraídos dos parágrafos originais, e a concordância com suas observações é promovida por firme exposição de dados e efusiva defesa de argumentos. Mais do que simplesmente apresentar as divisões que julgou pertinente, o escritor exalta a qualidade de Flaubert ao conduzir os temas, ao descrever as tramas e ao inovar no estilo.
Complementando o exame do perfil genérico do texto de Flaubert, Llosa também explicita a presença de quatro tempos narrativos, interligados habilmente no contexto do romance francês. Segundo ele, coexistem: o tempo singular ou específico (constituindo acontecimentos transitáveis e com mobilidade), o tempo circular ou repetição (abordando, em poucas linhas, extensas rotinas), o tempo imóvel ou eternidade plástica (referindo-se às descrições de lugarejos tomados como cenários) e, ainda, o tempo imaginário (evidenciado nos pensamentos dos personagens que enxergam-se em lugares para os quais nunca foram). Tal variedade permitiu que fossem relatados episódios diversos que se encaixassem de maneira certeira nos propósitos de Flaubert, agregando complexidade e estilo ao romance e satisfazendo, talvez, sua ânsia pela perfeição do texto e a relevância duradoura do exemplar. 
Somando-se, assim, às sagazes trocas de tempos narrativos, Llosa explica que há, em Madame Bovary, diferentes tomadas de perspectivas de narração, alternando, vez ou outra, entre narrador-personagem plural (juntamente com o narrador onisciente), narrador filosófico, narrador-personagem singular e palavras em cursiva - estas últimas em nível retórico que, para os padrões da literatura da época, significaram inovação estilística. A junção das duas novidades estruturais fazem da obra de Flaubert um divisor de águas na literatura da época, alterando paradigmas que vigoravam naquele contexto.
Cabe também ressaltar que Mario Vargas Llosa é convicto ao afirmar que a grande contribuição técnica de Flaubert com sua aclamada Madame Bovary foi a utilização pioneira do estilo indireto livre. Nas palavras do crítico, tal mecanismo viabilizou a criação de uma “ambivalência na qual o leitor não sabe se aquilo que o narrador disse provém do relator invisível ou do próprio personagem que está monologando mentalmente”. Trata-se, portanto, de uma forma ambígua de relatar os fatos do romance, aproximando narrador e personagem de tal forma a quase confundi-los.
Por fim, resta mencionar que, após o sucesso de Madame Bovary, o caráter revolucionário de Flaubert, em estilo e forma, originou uma legião de seguidores que o enxergaram como um autor realista, apontando suas preferências triviais e solidamente amparadas por acontecimentos corriqueiros como forma de comprovar a teoria. Llosa, porém, desmente a afirmação histórica e condena as conclusões precipitadas ao dizer que o francês horrorizava-se com o desprezo estético que dominava aqueles que o tinham como fundador de uma nova perspectiva literária, pois o estilo e a beleza, características preteridas pelos que diziam segui-lo, eram para Flaubert a razão de ser da literatura. A intenção dele, segundo Mario Vargas Llosa, sempre fora “dar à prosa narrativa a categoria artística que até então só a poesia havia alcançado”. A diligência de Flaubert na composição dos capítulos, que tomavam dele todas as energias de que dispunha e apenas após vários rascunhos chegava-se ao formato definitivo, somente evidencia a inegável preocupação com a forma do texto – apreensão que incluía, do mesmo modo, atenção quase neurótica à estética visual e à sonoridade das frases.

Depois de finalizada a leitura de A Orgia Perpétua, a sólida admiração de Mario Vargas Llosa a Flaubert e ao seu romance de maior sucesso é absolutamente inquestionável. Mais do que um guru, o francês foi para o iniciante peruano uma inspiração, um amigo que o ajudou a entender mais sobre si mesmo e sobre as possibilidades que se abriam diante dos olhos ávidos do jovem escritor. Llosa é grato a Flaubert talvez na mesma medida em que dobra-se diante de Ema, devendo a ambos, então, respectivamente, a arte e a vida.


Trecho: “[Ema] tem sido admirada por homens e mulheres das mais diferentes condições, austeros professores dedicaram sua vida a estudá-la, jovens iconoclastas querem acabar com toda a literatura do passado e começar outra nova a partir dela, sábios filósofos que a ofenderam fazem propósito de emendar-se em grossos volumes que servirão de soco para sua estátua. E isto não ocorre apenas em seu país, mas em muitos. Agora também no mundo de fala castelhana, onde, depois de ter sido muito tempo esquecida, volta a estar ao alcance de tantos olhos, mãos, corações, numa digna tradução. Deveria estar ciumento, mas não estou; como a certos velhos perversos com suas jovens esposas, agrada-me muito essa constante solicitação, esse favor multidudinário, essa excitação abundante que cerca a moça que amo. Sei que, no território em que esbanja sua beleza, ninguém, além do oficial de saúde, de Rodolfo e de Leão, gozará dela, e que aqui onde me encontro a ninguém poderá dar mais do que deu a mim.”

P.S: Madame Bovary foi um livro marcante para mim também. Os sentimentos de Ema são profundos e a profundidade de um sofrimento me encanta ao mesmo tempo que me comove. Embora não seja meu livro preferido, está seguramente entre eles; e a admiração de Llosa pelo texto só faz crescer o entusiasmo de enxergar na literatura a única forma de fugir da realidade, como em uma orgia perpétua. 

sábado, 26 de janeiro de 2013

A Mulher Desiludida, de Simone de Beauvoir



A Mulher Desiludida, obra de Simone de Beauvoir publicada em 1967, traz três novelas independentes que, no conjunto, tratam de temas semelhantes. Retratando personagens femininas na faixa dos 40 anos, a autora aborda com perspicácia temas como a crise de meia-idade, a solidão e o fracasso.
O primeiro texto intitula-se “A Idade da Discrição” e descreve a decepção de uma mãe ao ver seu filho contrariá-la em ideologias e atitudes. Após o casamento do herdeiro, que, na opinião da senhora, uniu-se desfavoravelmente a uma estirpe duvidosa, existe uma ruptura que desfaz a tranqüilidade familiar e suscita uma reflexão magoada, porém não menos pertinente. Felipe, o filho, abandona as doutrinas dos pais e opta por contrariar os pressupostos políticos que lhe foram incutidos desde a infância, abandonando a tese que o levaria à ascensão acadêmica e aceitando um trabalho governamental, quando sua posição deveria ser – se levadas em conta as expectativas de seus antecessores – de absoluta repugnância ao sistema e total dedicação à intelectualidade.
A afronta parece mais severa aos olhos da mãe. Ela acusa o rebento de ter abnegado dos ensinamentos mais tenros e atribui à Irene, a nora que enxerga como um exemplar clássico da rasa burguesia, grande parcela da culpa pela mudança de Felipe, uma vez que seu porte dissimulado e suas idéias ambiciosas o teriam afastado da carreira digna que seus pais lhe haviam preparado.
Firme em sua resignação, recusando-se em receber o filho, a ouvi-lo e a perdoá-lo, a mulher aborrece-se, também, com a repercussão de seu mais recente lançamento literário. Após obter sucesso com algumas publicações anteriores, é com indignação que percebe que não foi capaz de atingir a inovação de pensamento que havia proposto a si mesma, empenhando-se nas linhas que escrevia. As decepções se acumulam e se misturam; e André, seu marido e companheiro, se condói e é reprimido, argumenta e é escarnecido.
Trata-se de um retrato interessante do desenrolar da meia-idade em uma figura inteligente e segura, mas nem por isso poupada das crises que acompanham o envelhecimento. Perder o poder sobre o filho, assisti-lo ir de encontro a tudo que delineara para ele; compreender que falhara na produção de seu livro, galgando-o à desonra de ser apenas ordinário: é o temor de sucumbir ao poder do tempo, percebendo que suas escolhas talvez tenham repercutido de forma diferente do que planejara.
O segundo texto da obra, “Monólogo”, é simplesmente brilhante. O próprio título esclarece a forma do discurso, que quase não tem vírgulas e segue um ritmo que exige fôlego e concentração, embora o artifício só contribua para que o relato seja ainda mais fascinante: Murielle, a protagonista, passa o réveillon sozinha e relata com pungente angústia os tormentos que a assombram, no prenúncio de uma loucura amargurada.
Há, na trama, dois casamentos desfeitos, uma filha morta por suicídio e um filho ausente sob domínio de um homem que ela deseja reaver – mesmo sem amor ou interesse mútuo, talvez em uma tentativa exasperada de sentir-se parte efetiva da vida de alguém. Murielle argumenta que Francis, a criança que lhe foi tomada, necessita de um lar; implora para que seus direitos de mãe sejam respeitados, que não lhe neguem o afeto que devota a ele na mesma proporção que dedicava à Sylvie, que ao matar-se deixou um bilhete comovente e deveras explicativo: “Papai, eu te peço perdão, mas não agüento mais isto.”
Murielle é enfática ao criticar a mãe, a afirmar diversas vezes que desprezava profundamente o irmão. O círculo familiar do qual fez parte é um peso em suas memórias, um tormento ao relembrar sua própria condição. A mulher é continuamente acusada de provocar o suicídio da filha, e as denúncias endurecem os atritos e dão forma às queixas fluídas e sufocantes que deixam de habitar apenas o coração de Murielle para instalarem-se, igualmente nítidas, na mente do leitor.
Abandonada pelos seus e afrontada pela felicidade daqueles que festejam a dada, o desespero da protagonista é intenso. Relegada à própria sorte, fica fácil enxergar que Murielle abandona-se aos devaneios, e quem a lê, assim como todos os outros com quem a mulher tem alguma ligação, a tomam certamente por louca.
Por fim, a terceira parte da obra dá título ao livro, “A Mulher Desiludida”. Escrito em forma de diário, Monique dedica-se ao relato de seu cotidiano para, inicialmente, fugir da solidão da ausência temporária do marido, Maurice, um médico ocupado e envolvido com pesquisas. Mãe de duas filhas, ela renegou todas as possibilidade de concretizar algum tipo de individualidade e dedicou-se exclusivamente à família. Por conta disto, existe em seu comportamento uma aversão a aceitar que qualquer ente possa esquivar-se de precisar dela, e a atenção que reserva a eles chega a ser extenuante.
A história toma outra forma, porém, quando Monique descobre que seu companheiro há vinte e dois anos tem um caso extraconjugal. Sua reação é estúpida: aceita com submissão, orientada por conhecidas, acreditando que trata-se de uma paixão passageira que nada pode abalar.
Ao conhecer o alvo da excitação do marido, a advogada Noellie, Monique convence-se de que não pode haver real encanto por parte de Maurice. A moça, apenas alguns anos mais jovem que ela própria, tem tudo o que ambos sempre repreenderam: é superficial, ambiciosa e oportunista. Seu riso é falso, assim como seu interesse. Tem uma filha, mas não lhe presta a devida atenção. Mente sobre suas habilidades e superestima seu talento. Monique está certa de que não há perigo em consentir essa ligação. Resigna-se, permitindo que Maurice a visite com freqüência, passe noites com ela e, mais tarde, passe e decidir com a amante pormenores que afetam diretamente a ela, Monique, a esposa oficial.
Seus temores crescem na medida em que a distância conjugal aumenta. Maurice mente que está no laboratório enquanto distrai-se com Noellie; deseja viajar com ela, não pode sequer pensar em renegá-la. Monique apenas consente. Muitas são as amigas procuradas, mas nenhum conselho seguido surte o efeito desejado. Maurice não se cansa da advogada e Monique definha-se na certeza de que o perdeu.
Em determinado momento da narrativa, a mulher traída afirma que não existe possibilidade de vida sem o marido, que nada sabe sem ele e que nada tem além dele. Jamais empenhou-se em construir uma carreira, recusando, inclusive, várias ofertas de trabalho. Simone, através deste cenário, expõe sua vertente feminista, esclarecendo nas entrelinhas seu repúdio pela condição das mulheres que viviam à sombra de seus maridos, alimentando por eles cega dependência.
Talvez para reiterar o alerta e disseminar tal deplorável condição, Monique apresenta todos os sinais de consumir-se em sua própria infelicidade. Perde peso, lamenta-se, rememora os cuidados com as filhas e percebe que seu zelo exagerado, advindo provavelmente da falta de outra fonte de ocupação, terminou por proporcionar à Colette e Lucienne uma vida medíocre, para não dizer miserável: enquanto a primeira contentou-se com um casamento cretino, a segunda tornou-se fria, fugidia ao convívio familiar e falsa nos círculos sociais.
Monique compreende, então, o fracasso que dá tom à sua vida. Perdeu o amor do marido, falhou na educação das filhas e encontra-se, aos quarenta e quatro anos, vivendo uma condição que mal consegue suportar. Suas reflexões tornam-se turbulentas, repetitivas, extremamente melancólicas. A desilusão que dá nome ao diário e à obra é, realmente, a característica mais evidente no texto, que tem em sua intensidade um fervor quase palpável.

O fato é que Simone de Beauvoir, que em qualquer análise de obra ou vida é indiscutivelmente associada ao companheiro, o célebre filósofo Jean-Paul Sartre, não merece figurar apenas como uma ramificação na vida da celebridade existencialista que tomou por marido. Sua escrita, por si só, é deslumbrante e acompanha as nuances do livro, sendo leve e envolvente ou pesada e inebriante de acordo com os temas e abordagens. Sua publicação mais importante é, certamente, “O Segundo Sexo”, na qual se propõe a elucidar alternativas e liberdades às mulheres, na expressão mais firme do feminismo.A Mulher Desiludida é uma leitura justificada por motivos que só são firmemente compreendidos após o término da obra.


Trecho: “É, talvez, nesses instantes em que o vejo distanciar-se que ele existe para mim com mais perturbadora evidência: a silhueta alta diminui, desenhando cada passo o caminho de sua volta; ela desaparece, a rua parece vazia, mas, em verdade, é um campo imantado que o reconduzirá a mim como a seu lugar natural. Essa certeza me comove ainda mais que sua presença.”