Presença de
Anita é um romance denso e, em alguns trechos, quase opressivo em sua
intensidade. O enredo, belamente construído por Donato, prioriza os personagens
em detrimento dos cenários e nos introduz a Eduardo, um arquiteto quarentão
que, de acordo com Dr. Eugênio, seu médico, já nasceu dotado de uma ansiedade
que não o permite desfrutar de uma vida tranqüila.
Eduardo é um homem dividido entre quatro mulheres,
confusamente indeciso entre sentimentos distintos que oscilam entre a
idealização, o desejo e o amor. Trata-se, essencialmente, de um percurso
turbulento que tem na realidade do personagem o reflexo inexorável do tumulto
mental que o acompanha: a concepção de Cíntia, a primeira das mulheres amadas,
desencadeia a série de fatos que dão ao livro sua conotação controversa e, ao
mesmo tempo, envolvente.
Cíntia é, portanto, fruto da imaginação agitada de
Eduardo, que a nomeia em sonoridade breve e doída e, de seu punho, lhe dá
formas adolescentes e características marcantes: o pescoço tenro, os cabelos
voluptuosos, a boca sensual. Há nela uma aura misteriosa, uma crueldade
comedida, uma maldade intrínseca. É Cíntia o seu primeiro amor – e é por ela,
baseando-se nas qualidades que atribuiu à moça imaginária, que busca todas as
mulheres com quem se envolve. Recém desenhada, o esboço adverte Eduardo: “Um
dia você me encontrará e não poderá ser meu”. E Eduardo, enamorado da criação ainda
que consciente da realidade, responde-lhe que já a procurou por muito tempo e
que jamais a encontrou. Certo de seu sonho e ainda mais convicto da
impossibilidade de concretizá-lo, casa-se com Lúcia.
Lúcia, a segunda, é, por sua vez, o oposto completo
de Cíntia. Eduardo descreve a esposa como uma mulher sem brilho, dona de uma
beleza que atrai, mas não empolga. Julga-a de uma frieza inabalável, em alguns
momentos reconhece sua superioridade e, por fim, ciente de que não pode mais
continuar com ela de acordo com as determinações do matrimônio, admira a
extrema correção com que Lúcia conduz sua vida ordinária, um traço que permite
que ela seja incapaz de cometer pecados, embora esteja sempre pronta a
perdoá-los sem humilhar o pecador. Convém dizer, em defesa do homem que a desposou,
que Eduardo tenta amá-la – assim como tenta amar os filhos sem que jamais tenha
lhes dado a atenção e o afeto esperados de um pai –, porém sua natureza
indomável, tão diferente da de Lúcia em variados aspectos, o impele sempre para
uma aventura abrasadora, certamente muito distante da parcimônia que emana de
Lúcia, de seu ar gélido que insiste em paralisar o interesse do marido.
Anita, a terceira, é a força que move toda a trama. A
jovem, cuja idade não revelada supõe que ela não seja mais do que uma menina,
aparece, inicialmente, na aflição de um Eduardo sentimentalmente insatisfeito,
como a personificação de Cíntia, a mulher idealizada. A jovem, que se muda para
a cidade de Eduardo e vai morar no sótão de propriedade de um estabelecimento
que ele freqüentava, é vista pela primeira vez debruçada na janela dos
aposentos, o reflexo da luz em suas costas impedindo que Eduardo lhe estudasse
as feições. De imediato, ao contemplar sua sombra e distinguir apenas os seus
cabelos louros, ele se questiona: seria possível que se chamasse Cíntia?
Descobre-se, em seguida, que se trata de Anita, uma
menina com um passado obscuro, aparentemente sozinha no mundo. Suas maneiras
são altivas e expansivas, seus olhos são rasos e seus sentimentos efusivos e
enérgicos. Por mais de uma vez e em mais de uma situação Eduardo caracteriza
Anita como veemente, palavra que reverbera em todas as ações da pupila, sejam
sutis ou coléricas. Dessa aproximação, marcada pela atração carnal de ambos os
lados, nasce o romance que desestrutura a vida de Eduardo e leva o casal de
amantes a extremos perigosos – e o ápice disso tudo é o plano de mútuo suicídio
que os dois concordam em cometer, planejando, na ilusão de Anita e na covardia
de Eduardo, viverem juntos na eternidade.
Com Anita morta por sua mão, em um tiro disparado de
forma hesitantemente constrangida, Eduardo sobrevive ao atentado ao qual também
se submete após o assassinato da amante. Levado ao hospital e vigiado pelo fiel
Dr. Eugênio, o homem escapa com vida e, juntamente com o vigor que lhe volta ao
corpo, a vontade de morrer – com Anita e por Anita - afasta-se permanentemente
de sua alma. Cabe observar que embora almejasse, na fatídica ocasião, concluir
o pacto que fizera, ele deixa de desejar juntar-se e ela e agarra-se à
realidade e à vida. Recuperado, enfim, enfrenta em tribunal um julgamento que o
absorve da culpa de um crime, mas o encarcera nas memórias de uma Anita
apaixonada que insiste na conclusão dos ajustes que haviam combinado em vida,
nas tardes e noites passadas no sótão.
A quarta personagem feminina - cujas características
estimulam o leitor a pensar que se trata de outra adolescente - é Diana, irmã
mais nova de Lúcia, esposa de Eduardo. A jovem, que nunca demonstrara qualquer
empatia pelo cunhado desde que ele fora apresentado à família, se vê apaixonada
pelo homem no momento em que toma ciência da existência e, sobretudo, do
desfecho do caso extraconjugal. Deslumbrada pelo romantismo da situação,
atraída pelo destino mórbido de Anita frente à sobrevivência de Eduardo, a
menina joga-se nos braços do homem alegando que a coragem demonstrada diante de
uma complicação amorosa fez com que entendesse que haviam sido feitos um para o
outro. Até o escárnio inicial, que se arrastava desde a infância de Diana e
evapora-se após a convalescência de Eduardo, é explicada como um rancor
angustiado por Lúcia haver se casado com o homem que estava destinado a ser
dela.
Comprometida com um homem ordinário, de nome Batista,
Diana não hesita em abandoná-lo sem o menor remorso, consciente que está de sua
paixão por Eduardo e firmemente confiante no retorno completo e sublime de seu elevado
sentimento. Embora relutante, talvez um pouco desconfortável diante de novas e
perigosas possibilidades amorosas, Eduardo tenta resistir aos joviais encantos
de Diana. Pensa realmente poder controlá-la, subvertê-la de acordo com seus
próprios desejos masculinos, ter com ela apenas uma diversão esporádica que não
afetaria sua vida de marido e pai de família, faceta que se esforçava para
desempenhar de maneira satisfatória desde que fora sumariamente perdoado pela
fria Lúcia. Não pôde, porém. Seus planos de calmaria e sossego são
definitivamente arruinados quando, em uma revelação impressionante, Eduardo
descobre nas formas de Diana, em sua pele alva e macia de adolescente
libertina, a própria silhueta de Cíntia, revelando-se a ele como o mais
intrigante dos segredos. Sua reação caracteriza-se por um misto envolvente de
estupefação e tortura, além de grata realização por ter sua amada, a Vitoriosa,
acolhida em seus braços além dos esboços em papel.
Diante de tal revelação, Eduardo torna-se incapaz de
resistir aos encantos de Diana, em sua condição de portadora dos milagres de
Cíntia, e promete à cunhada que largará Lúcia para fugir com ela. Anita, a essa
altura, já deixou de ser uma lembrança vívida para tornar-se uma sombra desbotada
na memória do amante, por sua vez seguro de que não havia mais nada que, enquanto homem vivo, pudesse fazer pela
morta. Convicto, completamente imerso no milagre do encontro real com sua paixão imaginária, Eduardo
desculpa-se com a família, alega que precisa viajar – omitindo o nome da
acompanhante para poupar a reputação da linhagem e os sofrimentos da esposa – e
despede-se dos filhos com a distância habitual.
De malas prontas, com a nova vida encaminhada, a
passagem marcada para a próxima partida e Diana esperando por ele, Eduardo
sente uma necessidade irremediável de visitar o sótão que fora seu ninho de
amor com Anita. Conchita, um objeto peculiar que tinha a forma de uma
bonequinha e que fora, muitas vezes, alvo de ciúmes por parte da menina,
significava para ele a única ligação que ainda o prendia à antiga amante,
carecendo de imediata destruição para que ele finalmente se libertasse das
lembranças que o invadiam vez ou outra. Dr. Eugênio, muito solícito,
prontifica-se a acompanhá-lo, tomado de uma curiosidade que não consegue
controlar.
Uma vez nas escadas, percorrendo os degraus sem
iluminação que ele tantas vezes subira para encontrar Anita, Eduardo quase pode
jurar que ela está ali, a esperá-lo seminua, pintando as unhas dos pés e
emanando aquele aroma adocicado de esmalte que lhe era tão próprio. A mobília
permanece intocada, quase não há vestígios do incidente ocorrido e mesmo Dr.
Eugênio extasia-se diante do cenário, imaginando a diversão desfrutada pelo
cliente naquele recanto velado. Absorvido pelas reminiscências, mas não por
isso menos determinado, Eduardo concretiza o que se dispusera a fazer e parte
Conchita em diversos pedaços, sentindo-se finalmente preparado para abandonar
tudo o que Anita havia significado e todas as memórias que ela poderia
suscitar, obstinada e intensa como era.
Ao deixarem o sótão, finalmente, os amigos enfim despedem-se.
Dr. Eugênio, demonstrando a costumeira estima que dispensava a Eduardo,
deseja-lhe sorte em sua nova vida, fazendo-lhe votos de um grande futuro. Ele,
por sua vez, agradecido da gentileza, mal pode conter dentro de seu corpo
aquecido a chama da liberdade que crepitava em seu coração e espalhava-se para
os demais órgãos, consumindo-o. Em passos rápidos, metaforicamente expressando
sua pressa em recomeçar a vida com a posse de Diana em sua plenitude, Eduardo é
contido repentinamente pelo surgimento da face furiosa de Anita, suas mãos
crispadas: “Tu me traíste!”, é só o que ela diz, os olhos cheios de pranto, os
cabelos em desalinho, implorando por um amor que ainda se sentia capaz – e,
mais ainda, no direito - de ter.
Anita roga-lhe, implora para que Eduardo se junte a
ela. Não cessa de dizer que o ama ardentemente, que o espera com impaciência,
que desde que se foi, pelas mãos quentes do amante, aguarda por ele na tranqüila
eternidade prometida. O homem, inicialmente assustado pela agressividade
demonstrada pelo espectro da amante, põe-se a correr para fugir do fantasma.
Anita, entretanto, hábil e decidida como fora em vida, segue-o, tenta beijá-lo,
busca convencê-lo de que o lugar dele é junto dela, que estavam fadados ao amor
eterno que não tinham conseguido viver na Terra. Consciente, enfim, de que a
jovem nenhum mal poderia fazer-lhe, Eduardo recusa-se resolutamente a segui-la,
negando-lhe veementemente o pedido. Anita, ao ver-se rejeitada, tem a face
esmaecida e as órbitas dos olhos esvaziadas de tudo o que é humano. Reflete-se
em seu semblante enevoado uma aflição, um tormento, o ódio, e tudo o que a
compunha some no ar com um estalo. Eduardo está finalmente só.
Trecho:
“Ela estava em seus braços e, querendo beijá-lo, passava através dele e o
repelia com a sua febre, que era gelo, mais fria que gelo. Ele sacudia a
cabeça, que não, que não, e ela se debruçava sobre aquele homem que lhe fugia,
hesitava um instante com as mãos enclavinhadas, e depois, cedendo ao desespero,
esbofeteava-o, esbofeteava-o uma, duas, três vezes, e chorava, chorava. E como
o homem não cedia – que não, que não – tentava aquecê-lo com seus beijos, como
em vida fizera, mas os seus beijos eram gelados e gelavam, eram gelados e
doíam.”
P.S: Confesso que fiquei levemente assustada e
grandemente surpresa quando percebi que Presença
de Anita (1948), de Mário Donato, é anterior à célebre obra de Nabokov, Lolita (1955). Sendo o último título o
meu romance preferido de todos os tempos, talvez faça sentido algumas
especulações que afirmam que o russo inspirou-se no brasileiro para produzir a
trama que o imortalizou na literatura, haja vista a semelhança no tema: a
paixão irrefreável por uma mulher muito mais jovem.
De fato, ambos os autores e, por conseguinte, ambas
as obras mencionadas, são, para mim, brilhantes. Donato foi uma grata
satisfação e foi também reconfortante gostar tanto assim de uma história
nacional. Nabokov, por sua vez, continua encabeçando minha humilde lista de
prediletos, mas há outro nome seguindo-o bem de perto...