“O único meio de suportar a existência é despojar-se na literatura como
em uma orgia perpétua.” Gustave Flaubert.
Mario Vargas Llosa, tomado pela adoração fiel por Madame Bovary, obra-prima do escritor francês Gustave Flaubert,
lançou em 1979 um livro que explicita suas ponderações pessoais sobre a publicação
de seu ídolo. No texto, Vargas Llosa inicia suas reflexões sobre o tema
afirmando que um punhado de personagens fictícios marcou sua existência de
maneira mais durável que boa parte dos seres de carne e osso que conheceu, e,
nesse contexto - que exalta o poder da literatura frente aos esquecimentos do
cotidiano -, Ema Bovary, a heroína de Flaubert, desponta como sua grande paixão
literária.
A adoração pelo romance de Flaubert, entretanto, não foi imediata. Vargas
Llosa esclarece, na parte intitulada Um,
que o primeiro contato com a trama ocorreu através do cinema, em 1952; a
segunda lembrança, por sua vez, é puramente acadêmica, e essa sim marca o
começo de uma duradoura história de envolvimento e entusiasmo.
Mario também é convicto ao ponderar que o estilo linear e simétrico de
Flaubert foi o estopim para o interesse. Considerando as claras preferências
pessoais do autor peruano à ordem rigorosa dos romances, aqueles com princípio
e fim, seu apetite pela seqüência da trama advém, em grande parte, de sua
propensão a seduzir-se mais com ações do que com reflexões – particularidades
que podem ser encontradas em
Madame Bovary e em seus pequenos acontecimentos: bailes,
reuniões, adultério e suicídio, por exemplo.
Quanto ao assunto, o estudioso assegura que elementos como violência,
rebeldia, melodrama e sexo, inseridos com prudência em uma história compacta, o
atraem mais do que romances em que as pequenas transgressões são suprimidas. Em
suas palavras, “a máxima satisfação que pode produzir um romance é provocar, ao
mesmo tempo da leitura, a admiração por alguma inconformidade, a cólera por
alguma burrice ou injustiça, a fascinação por situações de dramatismo e de
excessiva emocionalidade que o romantismo pareceu inventar porque usou e abusou
delas, mas que sempre têm existido na literatura, porque existiram sempre na
realidade.”
Há, ainda, segundo o ele, um segredo peculiar que ele partilha com Ema,
uma confidência solene que só faz aumentar os seus laços com ela: a angústia da
personagem ajudou a amenizar as tristezas do fiel leitor, e o suicídio da
primeira aquietou tendências semelhantes que crepitavam no coração que a
acompanhava com sofrimento e devoção. O trágico desfecho de Ema proporcionou a
Llosa, em seu momento de desespero, conforto e equilíbrio para que suportasse
as turbulências de sua vida, e em um trecho do relato o autor declara que foi
preciso que Ema se matasse para que ele próprio pudesse viver.
A segunda parte do livro de Mario, porém, toma uma direção diferente.
Abandonam-se as percepções pessoais e presencia-se focada concentração nas
circunstâncias singulares que de alguma forma influenciaram Flaubert a conceber
sua obra da maneira como foi produzida. Utilizando-se de uma composição de
perguntas e respostas, Vargas Llosa procura identificar e explicar as
conjunturas internas e externas que contribuíram para que o enredo, o cenário e
os personagens de Madame Bovary
fossem engendrados e, posteriormente, alimentados de acordo com a imaginação
perspicaz de Flaubert.
Na mesma etapa, destaca-se também a trajetória particular da vida do
escritor francês, detalhando fatos curiosos que refletiram com pertinência no
contexto que retratou em sua obra. Seus relacionamentos, tanto familiares
quanto amorosos, estão fartamente ligados ao desenrolar da vida de Ema,
Charles, Leão e Rodolfo da mesma forma que dois acontecimentos regionais, dos
quais Flaubert tomou conhecimento através de relatos proferidos por amigos e
vizinhos, configuraram-se como o alicerce de toda a trama que desenvolveu.
As influências de livros que precederam Madame Bovary e que de alguma forma colaboraram com a escrita de
Flaubert também são citadas. Mario elucida que a maior fonte absorvida é o
romance Dom Quixote, cuja autoria
deve-se ao espanhol Miguel de Cervantes. Outra obra eminente que apresenta
conexão com a trama francesa é, segundo Llosa, A Comédia Humana, de Balzac, a quem Flaubert dedicava certa
admiração, pontuando que “caso tivesse estilo, teria sido um escritor
memorável”.
A terceira e última parte do ensaio de Mario Vargas Llosa intitula-se O elemento acrescentado e trata, de
forma geral, das características específicas que compõe, de fato, as alegorias
mais marcantes de Madame Bovary.
Segundo o crítico, os principais tópicos são: a humanização das coisas, a
coisificação dos homens, a oposição entre dinheiro e amor, a protagonista – Ema
Bovary – como homem e, por fim, a existência de um mundo binário. Para
corroborar a análise e fundamentar as segmentações, Mario busca exemplos
extraídos dos parágrafos originais, e a concordância com suas observações é promovida por firme
exposição de dados e efusiva defesa de argumentos. Mais do que simplesmente
apresentar as divisões que julgou pertinente, o escritor exalta a qualidade de
Flaubert ao conduzir os temas, ao descrever as tramas e ao inovar no estilo.
Complementando o exame do perfil genérico do texto de Flaubert, Llosa
também explicita a presença de quatro tempos narrativos, interligados
habilmente no contexto do romance francês. Segundo ele, coexistem: o tempo
singular ou específico (constituindo acontecimentos transitáveis e com
mobilidade), o tempo circular ou repetição (abordando, em poucas linhas,
extensas rotinas), o tempo imóvel ou eternidade plástica (referindo-se às
descrições de lugarejos tomados como cenários) e, ainda, o tempo imaginário
(evidenciado nos pensamentos dos personagens que enxergam-se em lugares para os
quais nunca foram). Tal variedade permitiu que fossem relatados episódios
diversos que se encaixassem de maneira certeira nos propósitos de Flaubert,
agregando complexidade e estilo ao romance e satisfazendo, talvez, sua ânsia
pela perfeição do texto e a relevância duradoura do exemplar.
Somando-se, assim, às sagazes trocas de tempos narrativos, Llosa explica
que há, em Madame Bovary,
diferentes tomadas de perspectivas de narração, alternando, vez ou outra, entre
narrador-personagem plural (juntamente com o narrador onisciente), narrador
filosófico, narrador-personagem singular e palavras em cursiva - estas últimas
em nível retórico que, para os padrões da literatura da época, significaram
inovação estilística. A junção das duas novidades estruturais fazem da obra de
Flaubert um divisor de águas na literatura da época, alterando paradigmas que
vigoravam naquele contexto.
Cabe também ressaltar que Mario Vargas Llosa é convicto ao afirmar que a
grande contribuição técnica de Flaubert com sua aclamada Madame Bovary foi a utilização pioneira do estilo indireto livre.
Nas palavras do crítico, tal mecanismo viabilizou a criação de uma
“ambivalência na qual o leitor não sabe se aquilo que o narrador disse provém
do relator invisível ou do próprio personagem que está monologando
mentalmente”. Trata-se, portanto, de uma forma ambígua de relatar os fatos do
romance, aproximando narrador e personagem de tal forma a quase confundi-los.
Por fim, resta mencionar que, após o sucesso de Madame Bovary, o caráter revolucionário de Flaubert, em estilo e
forma, originou uma legião de seguidores que o enxergaram como um autor
realista, apontando suas preferências triviais e solidamente amparadas por acontecimentos corriqueiros como forma de comprovar a teoria. Llosa,
porém, desmente a afirmação histórica e condena as conclusões precipitadas ao
dizer que o francês horrorizava-se com o desprezo estético que dominava aqueles que o
tinham como fundador de uma nova perspectiva literária, pois o estilo e a
beleza, características preteridas pelos que diziam segui-lo, eram para
Flaubert a razão de ser da literatura. A intenção dele, segundo Mario Vargas
Llosa, sempre fora “dar à prosa narrativa a categoria artística que até então
só a poesia havia alcançado”. A diligência de Flaubert na composição dos
capítulos, que tomavam dele todas as energias de que dispunha e apenas após vários rascunhos chegava-se ao formato definitivo, somente evidencia
a inegável preocupação com a forma do texto – apreensão que incluía, do mesmo modo, atenção quase neurótica à estética visual e à sonoridade das frases.
Depois de finalizada a leitura de A
Orgia Perpétua, a sólida admiração de Mario Vargas Llosa a Flaubert e ao
seu romance de maior sucesso é absolutamente inquestionável. Mais do que um
guru, o francês foi para o iniciante peruano uma inspiração, um amigo que o
ajudou a entender mais sobre si mesmo e sobre as possibilidades que se abriam
diante dos olhos ávidos do jovem escritor. Llosa é grato a Flaubert talvez na
mesma medida em que dobra-se diante de Ema, devendo a ambos, então, respectivamente,
a arte e a vida.
Trecho: “[Ema] tem sido
admirada por homens e mulheres das mais diferentes condições, austeros
professores dedicaram sua vida a estudá-la, jovens iconoclastas querem acabar
com toda a literatura do passado e começar outra nova a partir dela, sábios
filósofos que a ofenderam fazem propósito de emendar-se em grossos volumes que
servirão de soco para sua estátua. E isto não ocorre apenas em seu país, mas em muitos. Agora também
no mundo de fala castelhana, onde, depois de ter sido muito tempo esquecida,
volta a estar ao alcance de tantos olhos, mãos, corações, numa digna tradução.
Deveria estar ciumento, mas não estou; como a certos velhos perversos com suas
jovens esposas, agrada-me muito essa constante solicitação, esse favor
multidudinário, essa excitação abundante que cerca a moça que amo. Sei que, no
território em que esbanja sua beleza, ninguém, além do oficial de saúde, de
Rodolfo e de Leão, gozará dela, e que aqui onde me encontro a ninguém poderá
dar mais do que deu a mim.”
P.S: Madame Bovary foi um livro marcante para mim também. Os sentimentos
de Ema são profundos e a profundidade de um sofrimento me encanta ao mesmo
tempo que me comove. Embora não seja meu livro preferido, está seguramente
entre eles; e a admiração de Llosa pelo texto só faz crescer o entusiasmo de
enxergar na literatura a única forma de fugir da realidade, como em uma orgia
perpétua.
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