sábado, 2 de março de 2013

A Orgia Perpétua, de Mario Vargas Llosa



“O único meio de suportar a existência é despojar-se na literatura como em uma orgia perpétua.” Gustave Flaubert.

Mario Vargas Llosa, tomado pela adoração fiel por Madame Bovary, obra-prima do escritor francês Gustave Flaubert, lançou em 1979 um livro que explicita suas ponderações pessoais sobre a publicação de seu ídolo. No texto, Vargas Llosa inicia suas reflexões sobre o tema afirmando que um punhado de personagens fictícios marcou sua existência de maneira mais durável que boa parte dos seres de carne e osso que conheceu, e, nesse contexto - que exalta o poder da literatura frente aos esquecimentos do cotidiano -, Ema Bovary, a heroína de Flaubert, desponta como sua grande paixão literária.
A adoração pelo romance de Flaubert, entretanto, não foi imediata. Vargas Llosa esclarece, na parte intitulada Um, que o primeiro contato com a trama ocorreu através do cinema, em 1952; a segunda lembrança, por sua vez, é puramente acadêmica, e essa sim marca o começo de uma duradoura história de envolvimento e entusiasmo.
Mario também é convicto ao ponderar que o estilo linear e simétrico de Flaubert foi o estopim para o interesse. Considerando as claras preferências pessoais do autor peruano à ordem rigorosa dos romances, aqueles com princípio e fim, seu apetite pela seqüência da trama advém, em grande parte, de sua propensão a seduzir-se mais com ações do que com reflexões – particularidades que podem ser encontradas em Madame Bovary e em seus pequenos acontecimentos: bailes, reuniões, adultério e suicídio, por exemplo.
Quanto ao assunto, o estudioso assegura que elementos como violência, rebeldia, melodrama e sexo, inseridos com prudência em uma história compacta, o atraem mais do que romances em que as pequenas transgressões são suprimidas. Em suas palavras, “a máxima satisfação que pode produzir um romance é provocar, ao mesmo tempo da leitura, a admiração por alguma inconformidade, a cólera por alguma burrice ou injustiça, a fascinação por situações de dramatismo e de excessiva emocionalidade que o romantismo pareceu inventar porque usou e abusou delas, mas que sempre têm existido na literatura, porque existiram sempre na realidade.”
Há, ainda, segundo o ele, um segredo peculiar que ele partilha com Ema, uma confidência solene que só faz aumentar os seus laços com ela: a angústia da personagem ajudou a amenizar as tristezas do fiel leitor, e o suicídio da primeira aquietou tendências semelhantes que crepitavam no coração que a acompanhava com sofrimento e devoção. O trágico desfecho de Ema proporcionou a Llosa, em seu momento de desespero, conforto e equilíbrio para que suportasse as turbulências de sua vida, e em um trecho do relato o autor declara que foi preciso que Ema se matasse para que ele próprio pudesse viver.
A segunda parte do livro de Mario, porém, toma uma direção diferente. Abandonam-se as percepções pessoais e presencia-se focada concentração nas circunstâncias singulares que de alguma forma influenciaram Flaubert a conceber sua obra da maneira como foi produzida. Utilizando-se de uma composição de perguntas e respostas, Vargas Llosa procura identificar e explicar as conjunturas internas e externas que contribuíram para que o enredo, o cenário e os personagens de Madame Bovary fossem engendrados e, posteriormente, alimentados de acordo com a imaginação perspicaz de Flaubert.
Na mesma etapa, destaca-se também a trajetória particular da vida do escritor francês, detalhando fatos curiosos que refletiram com pertinência no contexto que retratou em sua obra. Seus relacionamentos, tanto familiares quanto amorosos, estão fartamente ligados ao desenrolar da vida de Ema, Charles, Leão e Rodolfo da mesma forma que dois acontecimentos regionais, dos quais Flaubert tomou conhecimento através de relatos proferidos por amigos e vizinhos, configuraram-se como o alicerce de toda a trama que desenvolveu.
As influências de livros que precederam Madame Bovary e que de alguma forma colaboraram com a escrita de Flaubert também são citadas. Mario elucida que a maior fonte absorvida é o romance Dom Quixote, cuja autoria deve-se ao espanhol Miguel de Cervantes. Outra obra eminente que apresenta conexão com a trama francesa é, segundo Llosa, A Comédia Humana, de Balzac, a quem Flaubert dedicava certa admiração, pontuando que “caso tivesse estilo, teria sido um escritor memorável”.
A terceira e última parte do ensaio de Mario Vargas Llosa intitula-se O elemento acrescentado e trata, de forma geral, das características específicas que compõe, de fato, as alegorias mais marcantes de Madame Bovary. Segundo o crítico, os principais tópicos são: a humanização das coisas, a coisificação dos homens, a oposição entre dinheiro e amor, a protagonista – Ema Bovary – como homem e, por fim, a existência de um mundo binário. Para corroborar a análise e fundamentar as segmentações, Mario busca exemplos extraídos dos parágrafos originais, e a concordância com suas observações é promovida por firme exposição de dados e efusiva defesa de argumentos. Mais do que simplesmente apresentar as divisões que julgou pertinente, o escritor exalta a qualidade de Flaubert ao conduzir os temas, ao descrever as tramas e ao inovar no estilo.
Complementando o exame do perfil genérico do texto de Flaubert, Llosa também explicita a presença de quatro tempos narrativos, interligados habilmente no contexto do romance francês. Segundo ele, coexistem: o tempo singular ou específico (constituindo acontecimentos transitáveis e com mobilidade), o tempo circular ou repetição (abordando, em poucas linhas, extensas rotinas), o tempo imóvel ou eternidade plástica (referindo-se às descrições de lugarejos tomados como cenários) e, ainda, o tempo imaginário (evidenciado nos pensamentos dos personagens que enxergam-se em lugares para os quais nunca foram). Tal variedade permitiu que fossem relatados episódios diversos que se encaixassem de maneira certeira nos propósitos de Flaubert, agregando complexidade e estilo ao romance e satisfazendo, talvez, sua ânsia pela perfeição do texto e a relevância duradoura do exemplar. 
Somando-se, assim, às sagazes trocas de tempos narrativos, Llosa explica que há, em Madame Bovary, diferentes tomadas de perspectivas de narração, alternando, vez ou outra, entre narrador-personagem plural (juntamente com o narrador onisciente), narrador filosófico, narrador-personagem singular e palavras em cursiva - estas últimas em nível retórico que, para os padrões da literatura da época, significaram inovação estilística. A junção das duas novidades estruturais fazem da obra de Flaubert um divisor de águas na literatura da época, alterando paradigmas que vigoravam naquele contexto.
Cabe também ressaltar que Mario Vargas Llosa é convicto ao afirmar que a grande contribuição técnica de Flaubert com sua aclamada Madame Bovary foi a utilização pioneira do estilo indireto livre. Nas palavras do crítico, tal mecanismo viabilizou a criação de uma “ambivalência na qual o leitor não sabe se aquilo que o narrador disse provém do relator invisível ou do próprio personagem que está monologando mentalmente”. Trata-se, portanto, de uma forma ambígua de relatar os fatos do romance, aproximando narrador e personagem de tal forma a quase confundi-los.
Por fim, resta mencionar que, após o sucesso de Madame Bovary, o caráter revolucionário de Flaubert, em estilo e forma, originou uma legião de seguidores que o enxergaram como um autor realista, apontando suas preferências triviais e solidamente amparadas por acontecimentos corriqueiros como forma de comprovar a teoria. Llosa, porém, desmente a afirmação histórica e condena as conclusões precipitadas ao dizer que o francês horrorizava-se com o desprezo estético que dominava aqueles que o tinham como fundador de uma nova perspectiva literária, pois o estilo e a beleza, características preteridas pelos que diziam segui-lo, eram para Flaubert a razão de ser da literatura. A intenção dele, segundo Mario Vargas Llosa, sempre fora “dar à prosa narrativa a categoria artística que até então só a poesia havia alcançado”. A diligência de Flaubert na composição dos capítulos, que tomavam dele todas as energias de que dispunha e apenas após vários rascunhos chegava-se ao formato definitivo, somente evidencia a inegável preocupação com a forma do texto – apreensão que incluía, do mesmo modo, atenção quase neurótica à estética visual e à sonoridade das frases.

Depois de finalizada a leitura de A Orgia Perpétua, a sólida admiração de Mario Vargas Llosa a Flaubert e ao seu romance de maior sucesso é absolutamente inquestionável. Mais do que um guru, o francês foi para o iniciante peruano uma inspiração, um amigo que o ajudou a entender mais sobre si mesmo e sobre as possibilidades que se abriam diante dos olhos ávidos do jovem escritor. Llosa é grato a Flaubert talvez na mesma medida em que dobra-se diante de Ema, devendo a ambos, então, respectivamente, a arte e a vida.


Trecho: “[Ema] tem sido admirada por homens e mulheres das mais diferentes condições, austeros professores dedicaram sua vida a estudá-la, jovens iconoclastas querem acabar com toda a literatura do passado e começar outra nova a partir dela, sábios filósofos que a ofenderam fazem propósito de emendar-se em grossos volumes que servirão de soco para sua estátua. E isto não ocorre apenas em seu país, mas em muitos. Agora também no mundo de fala castelhana, onde, depois de ter sido muito tempo esquecida, volta a estar ao alcance de tantos olhos, mãos, corações, numa digna tradução. Deveria estar ciumento, mas não estou; como a certos velhos perversos com suas jovens esposas, agrada-me muito essa constante solicitação, esse favor multidudinário, essa excitação abundante que cerca a moça que amo. Sei que, no território em que esbanja sua beleza, ninguém, além do oficial de saúde, de Rodolfo e de Leão, gozará dela, e que aqui onde me encontro a ninguém poderá dar mais do que deu a mim.”

P.S: Madame Bovary foi um livro marcante para mim também. Os sentimentos de Ema são profundos e a profundidade de um sofrimento me encanta ao mesmo tempo que me comove. Embora não seja meu livro preferido, está seguramente entre eles; e a admiração de Llosa pelo texto só faz crescer o entusiasmo de enxergar na literatura a única forma de fugir da realidade, como em uma orgia perpétua.