quinta-feira, 29 de maio de 2014

Demian, de Hermann Hesse




Demian, escrito por Hermann Hesse, é um livro fascinante. O alemão, nascido em 1887 e famoso, entre outras características, por seu desencanto em relação à civilização europeia, também assina mais obras de expressão mundial, entre elas Sidarta e O Lobo da Estepe. Em biografias diversas é comum o destaque de sua índole romântica e de sua tendência às análises psicológicas; mas não há quem questione a força de seu legado àqueles que o sucederam.

O segundo atributo, no que se refere à atenção ao nível interior, pode ser nitidamente apreciado em Demian. Trata-se da história de Emil Sinclair, cuja narrativa, em primeira pessoa, remonta à infância e à juventude de um garoto que experimenta, desde cedo, as dicotomias do mundo e o comportamento do homem diante de suas próprias convicções.

Filho de pais abastados e irmão de jovens adoráveis, sempre rodeado de carinhos e de mordomias, o pequeno Sinclair está habituado a viver no que denomina “mundo luminoso”, preenchido por coisas puras e boas. Admite, porém, não sem demonstrar um traço de desconforto, que na fortaleza de seu lar há indícios da outra metade do mundo: a parcela proibida e suja, dizendo respeito aos empregados imbuídos de modos atrevidos e rudes.

Descrito logo no início do enredo e, a princípio, aparentemente sem grande significação, tal conceito foi, para mim, uma das maiores revelações da obra. Associa-se, mais para frente, a uma pertinente discussão religiosa que provocou em meu íntimo, por mais de uma vez, o imperativo de interromper a leitura e refletir sobre os trechos. A essa altura, Max Demian já foi introduzido e, aos poucos, posiciona-se como uma espécie de guia espiritual, encantando Sinclair com seu porte seguro e sua personalidade peculiar: uma sabedoria madura encerada na mente de uma criança.

É em uma das poucas conversas entre os meninos que Demian provoca o amigo com ponderações instigantes. A divisão dos mundos é citada novamente e reforça-se a disparidade entre as esferas. Demian, no entanto, é provocativo ao afirmar que não é justo (se é que esse termo faz-se correto), dedicar-se somente ao que é belo e puro. O mundo, ele diz, é composto por ambos os polos, complementares em sua oposição, e torna-se uma insensatez renunciar àquilo que faz parte da Natureza e, por conseguinte, de todo e cada homem sobre a Terra.

A referência a Deus, enquanto entidade suprema dotada de todo o poder, é questionada com severidade: não há como adorar apenas uma face da realidade, é preciso, pois, reunir as metades! Demian, perspicaz e audacioso, pondera que uma mudança se faz necessária na forma como são encarados os poderes grandiosos: trata-se de venerar, também, ao demônio – a quem se institui às posses do lado obscuro e proibido do mundo -, ou de promover a junção da pureza e da imundície em uma só entidade. A constatação de que tributar ao bem todo o esforço e empenhar-se na negação absoluta do mal, obliterando a visão do que possa parecer menos elevado, é, para Demian, um notável erro - senão uma tolice.

Questionamentos de proporções filosóficas também têm espaço na obra de Hesse. Sinclair é constantemente assaltado por dúvidas existenciais e suas reflexões indicam os sentimentos de uma criança pouco afeita aos padrões comportamentais de sua idade. O narrador, desde a infância, parece aparentar certo desconforto social, como se estivesse fadado a ser socialmente deslocado. Primeiro, rompe-se a aura fraternal da casa paterna, desfazendo toda a ternura que costumava lembra-lo da família, e tempos depois mina-se sua falsa aceitação estudantil. Sinclair é solitário, reflexivo, e suas tentativas de adequar-se a um padrão de jovialidade expansiva são geralmente frustrados.

Tamanha reclusão é explicada e reforçada em doses constantes. Há em Sinclair um propósito, ainda que nem mesmo ele, no início, tenha sabido disso com clareza. Tanto Emil quanto Demian, unidos por uma inquietação interior, estão certos de que a finalidade da vida é encontrar-se a si mesmo, estando, assim, preparado para enfrentar o destino tal qual se apresente. Trata-se de uma busca recorrente, um percurso sem fim:

“A vida de todo o ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro. Homem algum chegou a ser completamente ele mesmo, mas todos aspiram a sê-lo, obscuramente alguns, outros mais claramente, cada qual como pode”.

A verdade das palavras de Hesse, incutidas na mente de Sinclair, chega a ser incômoda. Em muitas ocasiões enxerguei axiomas que, de modo muito particular, fizeram meus olhos fixarem-se nas palavras como se elas fossem um alerta para o que tenho vivido – e, também, para o que tenho ocultado. Nas solicitudes de Demian, na confusão de Emil, na contribuição de outros personagens igualmente interessantes eu percebi, talvez um pouco surpreendida, que muitas das dúvidas da criança são as minhas próprias; mas muito de sua coragem me falta.

Por fim, para reiterar minha eterna propensão à temática amorosa, é válido citar que Sinclair abdica quase que totalmente do amor e da paixão. Os estímulos sexuais, aflorados na adolescência, o perseguem por algum tempo, mas ele reluta, sem ainda conhecer a causa, em entregar-se aos prazeres da carne. A volúpia que pudesse porventura assolá-lo desaparece, por fim, em seu encontro com uma jovem com a qual não troca, jamais, sequer uma palavra. Sinclair nomina-a Beatrice, consagrando a ela, em uma decisão quase etérea, a sua casta devoção.

É, porém, por Eva, cujo nome é extremamente sugestivo e apropriado, que Sinclair demonstra amor. Mãe de Demian, tão sagaz quanto o filho, a figura dela desperta na alma do jovem apaixonado toda a dualidade que permeou muitas de suas reflexões. Há, finalmente, a descoberta do sentimento que também eu considero o mais paradoxal de todos:

“O amor não era um obscuro instinto animal, como a princípio havia suposto; nem tampouco piedosa adoração espiritual, como a que consagrara à imagem de Beatrice. Eram ambas as coisas; ambas e muitas outras mais: era anjo e demônio, homem e mulher em um, ser e fera, sumo bem e profundo mal. Eu o desejava e o temia; mas estava sempre presente, sempre superior a mim”.



                                                           XX



Custa-me encerrar o texto. Lamento deixa-lo tão abruptamente, mas receio não ser plenamente capaz de detalhá-lo em sua complexidade e, ainda, de partilhar com segurança os meus próprios sentimentos em relação ao livro. Demian foi um marco, assim como outrora Lolita ou 1984, e toda a abundância de seu enredo foi, aqui, extremamente limitado. Detalhes importantes e potencialmente transformadores foram vergonhosamente omitidos. Me desculpo por isso também.



Assim como farei a todos que encontrar, pensei em recomendar a leitura de Demian ao meu irmão, hoje com 16 anos, enfatizando com efusivo entusiasmo o quão transformadora poderia ser a descoberta pessoal facilitada por Hesse. Não o fiz, admito, por dois motivos principais: primeiro porque seria, sem dúvidas, sumariamente desprezada sem qualquer consideração; segundo porque acredito que, em função do destino ou da demanda interior (temas tão tratados no texto de Hesse), o livro chegará até ele no preciso momento em que estiver preparado para aproveitá-lo – exatamente da mesma forma que, suponho em uma conspiração quase mística, encontrou também a mim.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Numa fria, de Charles Bukowski



Charles Bukowski é frequentemente descrito como o “santo padroeiro dos bêbados”. Nascido em 1920 e autor de obras como Mulheres e Notas de um velho safado, sua fama é a de um maldito que, alimentando sincera ternura pelos miseráveis, fez uso de uma linguagem violenta para retratar diversos ângulos de uma vida de excessos.
Numa fria, coletânea de contos de sua autoria, talvez seja um exemplo interessante de seu estilo literário. Não há floreios, preocupações estilísticas ou uso sofisticado de recursos linguísticos. Ao contrário de Flaubert, constantemente lembrado por sua quase paralisante fúria perfeccionista, Bukowski não parece preocupado com o impacto sublime de suas linhas: os textos são duros, bruscos e, para quem está habituado à leitura de Garcia Márquez ou Tostói, até mesmo um pouco constrangedores.
A temática dos capítulos é basicamente a mesma. O autor é recorrente ao tratar da bebida, da arte e do sexo em esmagadora maioria de seus contos. Há uma legião de ébrios sem rumo nem dinheiro, vagando de bar em bar em busca de uma mulher disponível – e os termos utilizados para descrevê-las não são necessariamente delicados.
Não sou eu quem vai dizer, porém, que a visão de Bukowski sobre as mazelas da vida (e também sobre suas alegrias, quando ainda há uma dose de uísque disponível) é equivocada. Talvez seja, para mim, apenas pouco poética, mas essa ponderação está longe de ser relevante. Ninguém disse que a literatura deve representar somente o plano ideal, o encontro perfeito de almas gêmeas, a história comovente de uma paixão proibida ou luta incessante pela paz no planeta. Bukowski atém-se ao que considera real, e é possível que a estranheza que sua obra me causou (juntamente com o leve deslumbre por sua simplicidade abusada) advenha justamente disso.
Incomodou-me, principalmente, o seu descaso com o amor. Fiquei escandalizada, admito, com a falta de delicadeza de Bukowski ao discorrer com tanto desprendimento sobre algo que sempre julguei digno das mais elevadas expressões, um dos únicos temas obrigatoriamente livres de qualquer vocabulário torpe nas páginas dos livros. Um trecho esclarecedor, entretanto, fez com que minha resoluta antipatia se aplacasse de modo parcial. Ainda bem, porque eu estava apenas na página 68...
Em um diálogo corriqueiro, Meg e Tony discutem a possibilidade de um caso extraconjungal. Ela é amiga da esposa de Tony, Dolly, e está resistindo firmemente às investidas dele, que não parece ver problema algum na situação e a aconselha a ser ‘moderna’. Meg, um tanto quanto indignada, pergunta:
“- Tudo bem, o que há de errado com o amor, Tony?
- O amor é uma espécie de preconceito. A gente ama o que precisa, ama o que faz a gente se sentir bem, ama o que é conveniente. Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras no mundo que você amaria mais se conhecesse? Mas a gente nunca conhece.
- Tudo bem, então devemos fazer o melhor possível.
- Certo. Mas mesmo assim devemos entender que o amor é só o resultado de um encontro casual. A maioria das pessoas explora isso demais. Nessa base, uma boa foda não é de se desprezar inteiramente.” (p. 68-69).
Confesso que, ao passar os olhos por essas linhas, senti um leve incômodo. Aquela estranha sensação de repudiar as palavras mas resignar-se acerca da pertinência do conjunto. Eu, que tenho entre meus livros preferidos justamente aqueles que colocam o amor como o ápice inquestionável de uma existência (ainda que, nesse processo, haja mais pesar do que satisfação), me vi brutalmente atacada por uma realidade que, no fim, nunca pretendi contestar.
Analisando mais friamente, contudo, retomei uma postura de resguarda. Estou certa de que Tony confundiu o amor; tal qual Bukowski talvez tenha feito em sua vida de extravagâncias. Na ânsia de convencer Meg a subjugar-se às suas vontades, o marido ‘moderno’ tentou persuadi-la de que, em função da conveniência do amor, que vitima as pessoas que se encontram em um mero acaso, não valia a pena preocupar-se com ele – melhor mesmo era entregar-se ao prazer carnal.
Quase a totalidade dos contos do livro reitera essa abordagem. Em diferentes contextos, tendo como cenário os bares decaídos ou os quartos com cheiro de mofo, as mulheres despontam em alguns casos como passatempos irrecusáveis e, em outros, como presas efêmeras diante de um desejo latente. Não há qualquer conquista (e quando a persistência se faz necessária, desiste-se com argumentos semelhantes a “ela nem valia todo aquele empenho”, como se os homens, em sua maioria artistas, estivessem desacostumados à subserviência romântica) e surpreendeu-me positivamente o fato de que o sexo feminino raramente reclama dessa indiferença sentimental. Existe uma espécie de cumplicidade, de entendimento, como se todos compreendessem que se trata apenas de instintos, de volúpia, e que o resto é uma perda de tempo e um desperdício de esforço.
O amor, portanto, talvez seja devotado somente à arte. Assim como Bukowski, seus personagens são movidos a álcool e estimulados por corpos femininos, mas são quase sempre disciplinados em relação ao seu ofício. Produzem, publicam e produzem mais. A despeito do talento que possuem, permanecem imersos na mesma miséria – e, assim, bebem mais, comemorando ou afogando as mágoas.
Evidencia-se, então, uma certa adoração à pobreza, ao desapego, à falta de ambição; exalta-se a arte do infortúnio, aquela que acontece nos subúrbios e não carece de qualquer formalidade. É também assim o amor de Bukowski. E eu, embora relutante, ainda preferindo os gracejos de Nabokov, admito relativa pertinência nesse sentimento que é bem mais comum do que a elevação retratada nos romances-perfeitos: na ânsia de amar (ainda que da forma mais física possível) a todas, acaba-se não amando ninguém.