Demian, escrito por Hermann Hesse,
é um livro fascinante. O alemão, nascido em 1887 e famoso, entre outras
características, por seu desencanto em relação à civilização europeia, também
assina mais obras de expressão mundial, entre elas Sidarta e O Lobo da Estepe.
Em biografias diversas é comum o destaque de sua índole romântica e de sua tendência
às análises psicológicas; mas não há quem questione a força de seu legado àqueles
que o sucederam.
O segundo atributo, no
que se refere à atenção ao nível interior, pode ser nitidamente apreciado em Demian. Trata-se da história de Emil Sinclair,
cuja narrativa, em primeira pessoa, remonta à infância e à juventude de um
garoto que experimenta, desde cedo, as dicotomias do mundo e o comportamento do
homem diante de suas próprias convicções.
Filho de pais
abastados e irmão de jovens adoráveis, sempre rodeado de carinhos e de
mordomias, o pequeno Sinclair está habituado a viver no que denomina “mundo
luminoso”, preenchido por coisas puras e boas. Admite, porém, não sem demonstrar
um traço de desconforto, que na fortaleza de seu lar há indícios da outra
metade do mundo: a parcela proibida e suja, dizendo respeito aos empregados imbuídos
de modos atrevidos e rudes.
Descrito logo no
início do enredo e, a princípio, aparentemente sem grande significação, tal conceito
foi, para mim, uma das maiores revelações da obra. Associa-se, mais para
frente, a uma pertinente discussão religiosa que provocou em meu íntimo, por
mais de uma vez, o imperativo de interromper a leitura e refletir sobre os
trechos. A essa altura, Max Demian já foi introduzido e, aos poucos, posiciona-se
como uma espécie de guia espiritual, encantando Sinclair com seu porte seguro e
sua personalidade peculiar: uma sabedoria madura encerada na mente de uma
criança.
É em uma das poucas
conversas entre os meninos que Demian provoca o amigo com ponderações
instigantes. A divisão dos mundos é citada novamente e reforça-se a disparidade
entre as esferas. Demian, no entanto, é provocativo ao afirmar que não é justo (se
é que esse termo faz-se correto), dedicar-se somente ao que é belo e puro. O mundo,
ele diz, é composto por ambos os polos, complementares em sua oposição, e
torna-se uma insensatez renunciar àquilo que faz parte da Natureza e, por
conseguinte, de todo e cada homem sobre a Terra.
A referência a Deus, enquanto
entidade suprema dotada de todo o poder, é questionada com severidade: não há
como adorar apenas uma face da realidade, é preciso, pois, reunir as metades!
Demian, perspicaz e audacioso, pondera que uma mudança se faz necessária na
forma como são encarados os poderes grandiosos: trata-se de venerar, também, ao
demônio – a quem se institui às posses do lado obscuro e proibido do mundo -,
ou de promover a junção da pureza e da imundície em uma só entidade. A constatação
de que tributar ao bem todo o esforço e empenhar-se na negação absoluta do mal,
obliterando a visão do que possa parecer menos elevado, é, para Demian, um
notável erro - senão uma tolice.
Questionamentos de proporções
filosóficas também têm espaço na obra de Hesse. Sinclair é constantemente
assaltado por dúvidas existenciais e suas reflexões indicam os sentimentos de
uma criança pouco afeita aos padrões comportamentais de sua idade. O narrador,
desde a infância, parece aparentar certo desconforto social, como se estivesse
fadado a ser socialmente deslocado. Primeiro, rompe-se a aura fraternal da casa
paterna, desfazendo toda a ternura que costumava lembra-lo da família, e tempos
depois mina-se sua falsa aceitação estudantil. Sinclair é solitário, reflexivo,
e suas tentativas de adequar-se a um padrão de jovialidade expansiva são geralmente
frustrados.
Tamanha reclusão é explicada
e reforçada em doses constantes. Há em Sinclair um propósito, ainda que nem
mesmo ele, no início, tenha sabido disso com clareza. Tanto Emil quanto Demian,
unidos por uma inquietação interior, estão certos de que a finalidade da vida é
encontrar-se a si mesmo, estando, assim, preparado para enfrentar o destino tal
qual se apresente. Trata-se de uma busca recorrente, um percurso sem fim:
“A vida de todo o ser humano é um caminho em direção a si
mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro. Homem algum
chegou a ser completamente ele mesmo, mas todos aspiram a sê-lo, obscuramente
alguns, outros mais claramente, cada qual como pode”.
A verdade das
palavras de Hesse, incutidas na mente de Sinclair, chega a ser incômoda. Em muitas
ocasiões enxerguei axiomas que, de modo muito particular, fizeram meus olhos
fixarem-se nas palavras como se elas fossem um alerta para o que tenho vivido –
e, também, para o que tenho ocultado. Nas solicitudes de Demian, na confusão de
Emil, na contribuição de outros personagens igualmente interessantes eu
percebi, talvez um pouco surpreendida, que muitas das dúvidas da criança são as
minhas próprias; mas muito de sua coragem me falta.
Por fim, para
reiterar minha eterna propensão à temática amorosa, é válido citar que Sinclair
abdica quase que totalmente do amor e da paixão. Os estímulos sexuais,
aflorados na adolescência, o perseguem por algum tempo, mas ele reluta, sem
ainda conhecer a causa, em entregar-se aos prazeres da carne. A volúpia que
pudesse porventura assolá-lo desaparece, por fim, em seu encontro com uma jovem
com a qual não troca, jamais, sequer uma palavra. Sinclair nomina-a Beatrice, consagrando
a ela, em uma decisão quase etérea, a sua casta devoção.
É, porém, por Eva,
cujo nome é extremamente sugestivo e apropriado, que Sinclair demonstra amor. Mãe
de Demian, tão sagaz quanto o filho, a figura dela desperta na alma do jovem
apaixonado toda a dualidade que permeou muitas de suas reflexões. Há,
finalmente, a descoberta do sentimento que também eu considero o mais paradoxal
de todos:
“O amor não era um obscuro instinto animal, como a
princípio havia suposto; nem tampouco piedosa adoração espiritual, como a que
consagrara à imagem de Beatrice. Eram ambas as coisas; ambas e muitas outras
mais: era anjo e demônio, homem e mulher em um, ser e fera, sumo bem e profundo
mal. Eu o desejava e o temia; mas estava sempre presente, sempre superior a mim”.
XX
Custa-me encerrar o
texto. Lamento deixa-lo tão abruptamente, mas receio não ser plenamente capaz
de detalhá-lo em sua complexidade e, ainda, de partilhar com segurança os meus próprios
sentimentos em relação ao livro. Demian
foi um marco, assim como outrora Lolita
ou 1984, e toda a abundância de seu
enredo foi, aqui, extremamente limitado. Detalhes importantes e potencialmente
transformadores foram vergonhosamente omitidos. Me desculpo por isso também.
Assim como farei a
todos que encontrar, pensei em recomendar a leitura de Demian ao meu irmão, hoje com 16 anos, enfatizando com efusivo
entusiasmo o quão transformadora poderia ser a descoberta pessoal facilitada por
Hesse. Não o fiz, admito, por dois motivos principais: primeiro porque seria,
sem dúvidas, sumariamente desprezada sem qualquer consideração; segundo porque
acredito que, em função do destino ou da demanda interior (temas tão tratados
no texto de Hesse), o livro chegará até ele no preciso momento em que estiver
preparado para aproveitá-lo – exatamente da mesma forma que, suponho em uma
conspiração quase mística, encontrou também a mim.