Charles Bukowski é
frequentemente descrito como o “santo padroeiro dos bêbados”. Nascido em 1920 e
autor de obras como Mulheres e Notas de um velho safado, sua fama é a de
um maldito que, alimentando sincera ternura pelos miseráveis, fez uso de uma
linguagem violenta para retratar diversos ângulos de uma vida de excessos.
Numa
fria,
coletânea de contos de sua autoria, talvez seja um exemplo interessante de seu
estilo literário. Não há floreios, preocupações estilísticas ou uso sofisticado
de recursos linguísticos. Ao contrário de Flaubert, constantemente lembrado por
sua quase paralisante fúria perfeccionista, Bukowski não parece preocupado com
o impacto sublime de suas linhas: os textos são duros, bruscos e, para quem
está habituado à leitura de Garcia Márquez ou Tostói, até mesmo um pouco constrangedores.
A temática dos
capítulos é basicamente a mesma. O autor é recorrente ao tratar da bebida, da
arte e do sexo em esmagadora maioria de seus contos. Há uma legião de ébrios
sem rumo nem dinheiro, vagando de bar em bar em busca de uma mulher disponível –
e os termos utilizados para descrevê-las não são necessariamente delicados.
Não sou eu quem vai
dizer, porém, que a visão de Bukowski sobre as mazelas da vida (e também sobre
suas alegrias, quando ainda há uma dose de uísque disponível) é equivocada. Talvez
seja, para mim, apenas pouco poética, mas essa ponderação está longe de ser
relevante. Ninguém disse que a literatura deve representar somente o plano
ideal, o encontro perfeito de almas gêmeas, a história comovente de uma paixão
proibida ou luta incessante pela paz no planeta. Bukowski atém-se ao que considera
real, e é possível que a estranheza que sua obra me causou (juntamente com o
leve deslumbre por sua simplicidade abusada) advenha justamente disso.
Incomodou-me,
principalmente, o seu descaso com o amor. Fiquei escandalizada, admito, com a
falta de delicadeza de Bukowski ao discorrer com tanto desprendimento sobre
algo que sempre julguei digno das mais elevadas expressões, um dos únicos temas
obrigatoriamente livres de qualquer vocabulário torpe nas páginas dos livros.
Um trecho esclarecedor, entretanto, fez com que minha resoluta antipatia se
aplacasse de modo parcial. Ainda bem, porque eu estava apenas na página 68...
Em um diálogo
corriqueiro, Meg e Tony discutem a possibilidade de um caso extraconjungal. Ela
é amiga da esposa de Tony, Dolly, e está resistindo firmemente às investidas
dele, que não parece ver problema algum na situação e a aconselha a ser ‘moderna’.
Meg, um tanto quanto indignada, pergunta:
“-
Tudo bem, o que há de errado com o amor, Tony?
- O amor é uma espécie de
preconceito. A gente ama o que precisa, ama o que faz a gente se sentir bem,
ama o que é conveniente. Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil
outras no mundo que você amaria mais se conhecesse? Mas a gente nunca conhece.
- Tudo bem, então devemos fazer o
melhor possível.
-
Certo. Mas mesmo assim devemos entender que o amor é só o resultado de um
encontro casual. A maioria das pessoas explora isso demais. Nessa base, uma boa
foda não é de se desprezar inteiramente.” (p. 68-69).
Confesso que, ao passar
os olhos por essas linhas, senti um leve incômodo. Aquela estranha sensação de
repudiar as palavras mas resignar-se acerca da pertinência do conjunto. Eu, que
tenho entre meus livros preferidos justamente aqueles que colocam o amor como o
ápice inquestionável de uma existência (ainda que, nesse processo, haja mais
pesar do que satisfação), me vi brutalmente atacada por uma realidade que, no
fim, nunca pretendi contestar.
Analisando mais
friamente, contudo, retomei uma postura de resguarda. Estou certa de que Tony
confundiu o amor; tal qual Bukowski talvez tenha feito em sua vida de
extravagâncias. Na ânsia de convencer Meg a subjugar-se às suas vontades, o
marido ‘moderno’ tentou persuadi-la de que, em função da conveniência do amor,
que vitima as pessoas que se encontram em um mero acaso, não valia a pena
preocupar-se com ele – melhor mesmo era entregar-se ao prazer carnal.
Quase a totalidade dos
contos do livro reitera essa abordagem. Em diferentes contextos, tendo como
cenário os bares decaídos ou os quartos com cheiro de mofo, as mulheres
despontam em alguns casos como passatempos irrecusáveis e, em outros, como presas
efêmeras diante de um desejo latente. Não há qualquer conquista (e quando a
persistência se faz necessária, desiste-se com argumentos semelhantes a “ela
nem valia todo aquele empenho”, como se os homens, em sua maioria artistas,
estivessem desacostumados à subserviência romântica) e surpreendeu-me positivamente
o fato de que o sexo feminino raramente reclama dessa indiferença sentimental. Existe
uma espécie de cumplicidade, de entendimento, como se todos compreendessem que se
trata apenas de instintos, de volúpia, e que o resto é uma perda de tempo e um
desperdício de esforço.
O amor, portanto,
talvez seja devotado somente à arte. Assim como Bukowski, seus personagens são
movidos a álcool e estimulados por corpos femininos, mas são quase sempre
disciplinados em relação ao seu ofício. Produzem, publicam e produzem mais. A despeito
do talento que possuem, permanecem imersos na mesma miséria – e, assim, bebem
mais, comemorando ou afogando as mágoas.
Evidencia-se, então,
uma certa adoração à pobreza, ao desapego, à falta de ambição; exalta-se a arte
do infortúnio, aquela que acontece nos subúrbios e não carece de qualquer
formalidade. É também assim o amor de Bukowski. E eu, embora relutante, ainda
preferindo os gracejos de Nabokov, admito relativa pertinência nesse sentimento
que é bem mais comum do que a elevação retratada nos romances-perfeitos: na
ânsia de amar (ainda que da forma mais física possível) a todas, acaba-se não
amando ninguém.